Fux e o gol de honra

Fux e o gol de honra

 

Não me atreveria a comentar detalhes técnicos dos votos do ministros do STF no julgamento da trama golpista, não sou jurista. Mas pretendo comentar o placar: 4 X 1. De placar nós, brasileiros, entendemos. E também de ditadura militar, violência de Estado, racismo, sexismo e goleada. E todo brasileiro sabe que 4×1 é goleada, e que goleada é um resultado contundente. Se tivéssemos oito juízes na primeira turma do STF e não cinco, provavelmente o placar nos recordaria a fatídica derrota para a Alemanha no Mineirão. Naquela ocasião, a humilhação só não foi maior graças ao gol de Oscar no segundo tempo. O chamado gol de honra.

Todos sabemos o que é um gol de honra: trata-se do gol que preserva alguma dignidade e valor ao time derrotado, mesmo diante da goleada. O voto do ministro Fux equivale a um gol de honra. Mas a que pode ser atribuído seu valor?

Ao contrário de muitos, eu gostei do fato de que no julgamento de Bolsonaro e de sua quadrilha houve um voto díspar, discrepante. Um voto pária. Ainda que confuso, cansativo, enrolado e enrolador, incongruente. Um voto que abusou da desmedida para produzir dispersão no ouvinte e conteúdo suficiente para postagens dos interessados.

No julgamento da trama golpista, bastava maioria simples para condenar os acusados. Não era preciso unanimidade. Muitos julgamentos são assim. De concursos públicos para professor universitário a concursos de beleza, do Oscar às eleições para a presidência. Os derrotados podem não gostar do resultado, podem se achar mais inteligentes que o aprovado no concurso, mais bonitas que a miss do outro estado, mais talentosos que o protagonista do outro filme ou mais vocacionados à líder, mas é esperado que os concorrentes sejam parciais em suas avaliações de si mesmos. Por isso estabelece-se uma banca, um júri, uma comissão ou um colegiado decisório, e acata-se sua decisão, ainda que a contragosto.

Justamente, o problema das personalidades autoritárias e das mentes fascistas é a impossibilidade de reconhecer que há pessoas que pensam diferente, e que essa diferença não necessariamente representa um vício a ser combatido, e sim uma expressão soberana dos modos de ser, pensar e agir de concidadãos que partilham os desafios da construção de uma sociedade democrática, na qual convivem gostos, culturas e valores diversos.

Há cerca de 100 anos, Freud descreveu em “Psicologia das massas e análise do eu” o funcionamento da mentes obtusas que aderem cegamente a um mesmo ideal, e que cultivam o ódio dirigido a qualquer ideia distinta. Não por acaso, a Igreja e o Exército são as instituições apontadas como as que produzem esse tipo de homogeneidade do pensamento e de segregação da alteridade. Afinal, trata-se de instituições caracterizadas pela obediência à autoridade – militar ou eclesiástica – como valor supremo e inquestionável. E onde o questionamento é impedido vigora a proibição do pensamento e sua consequência: a unanimidade. Nelson Rodrigues, que entendia de futebol e de Brasil, descreveu o efeito dessa modalidade de produção de subjetividades com a máxima “toda unanimidade é burra”.

É preciso, portanto, celebrar a goleada não unânime – devido ao voto gol de honra de Fux – que decidiu pela punição exemplar de Bolsonaro e seus asseclas, inclusive altas patentes das forças militares do país que ainda não quiseram entender o sentido da democracia.

 

Daniel Kupermann é psicanalista e professor da USP

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Dezembro

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