Começo de conversa
Acho que seria de bom tom fazer dessa coluna uma apresentação de mim mesma. De que buraco eu saí. Por que cargas d’água estou aqui. Uma parte de mim, quem sou eu.
Pois bem. Nasci em Fortaleza, em 2 de fevereiro de 1980, hígida, de um parto natural. Sou filha de uma atriz carioca e de um professor e compositor cearense. Dois anos depois, os dois se separaram e escolheram que meu destino fosse ficar em Fortaleza com meu pai. Minha mãe voltou para Brasília.
Cresci com muitos livros e beleza e idiossincrasias, meu pai era um sobrevivente da ditadura e com ele carregava uma sacola de traumas mal resolvidos. Nosso apartamento tinha muitos livros, até na sala, onde não havia sofá. Nas férias, também sempre estive rodeada de livros na casa dos meus avós, onde minha mãe morava. Foi meio óbvio que eu caísse na armadilha da leitura e da escrita. E como diziam que eu levava jeito, segui trotando no meu cavalinho.
Uma vez roubei um poema cujo furto foi logo denunciado. Meu pai reagiu de maneira inesperada: “o poema é de quem lê assim como o sol é de quem vê”. Mal sabia meu pai que ele estava formando ali toda a minha noção estética do que é literatura. Não que eu cometa plágio, mas quase-plágios. Minha escrita é uma colagem de tudo que li e vi e ouvi e testemunhei. Fui virando escritora assim como fui virando mulher. Quando vi, já era: o sangue grosso na calcinha, as ideias saltitando na minha cabeça e a vontade de execrá-las no papel ou no computador.
Pois que sou da única geração que viveu o fim do analógico e o começo do mundo digital. Escrevia cartas e postais em máquinas de escrever, mas também escrevia e-mails e conversava pornografia no chat da UOL, falava no telefone enrodilhando meu dedo no cabo grosso do aparelho, ao mesmo tempo que tinha uma conta no ICQ. Cultivo certa vaidade por essa sorte porque é uma espécie de superpoder, uma lente que te permite observar o mundo se separando em dois.
Vivi em algumas cidades e a primeira delas foi Paris. De lá lembro de experimentar suco de maçã, caqui e Nutella, e de uma senhora árabe que sempre estava sentada no mesmo lugar de um café com uma vitrine comprida. Depois morei em três cidades nos Estados Unidos, Buenos Aires, onde lembro de ver um passeador de cachorros transitar com enormes labradores numa calçada larga, Brasília e seu céu imoral, Rio de janeiro e sua prosódia impagável e finalmente São Paulo, onde finquei minhas raízes.
Aos 23 publiquei minha tentativa de livro, de produção autoral e daí fui publicando em revistas e no meu blog na internet, até culminar na publicação do meu primeiro livro em 2012, pela extinta Cosac Naify. No meio disso meu pai e minha mãe já tinham falecido e eu acabava um arranjo com um músico que eu chamava de casamento. Deu certo enquanto durou.
Fiz faculdade de Rádio e TV no Rio de Janeiro e fui morar em São Paulo, me juntando à máfia cearense que aqui já estava estabelecida. No Rio, aos 23, comecei a fazer psicanálise e nunca mais parei. Acho que esse é um dado essencial na minha vida. Pois foi na psicanálise onde me segurei muitas vezes enquanto estive à beira do abismo. E jamais larguei.
O começo da minha carreira literária foi fácil e difícil. Fácil porque tudo saía fluido e difícil porque era um mundo extremamente sudestino e masculino. Fui logo taxada de “Maria-Teclado” porque queria me aproximar do meu universo ― o que no fim das contas me fazia rir, porque sabia que meu papo era sério e ninguém tiraria isso de mim.
Depois de Copacabana dreams, título do meu primeiro livro que homenageia o bairro onde vivi enquanto fazia faculdade, eu me casei com um editor (mais uma casa lotada de livros), e entrei numa luta junto a ele para ter filho. Parecia que a natureza não queria colaborar. Em meio ao caos dos tratamentos hormonais, eu iniciei a escrita do meu primeiro romance, Os tais caquinhos, que só fui terminar depois que minhas duas filhas nasceram: tivemos gêmeas completamente diferentes uma da outra.
Meu mundo se tornou terno e tenso. Minhas filhas me exigiam força, mas me doavam alegria. Era outro planeta. Repleto de excreções e experimentações lunáticas. Ser mãe me deu muita raiva da minha mãe. Como ela pôde me abandonar duas vezes? A primeira de um modo frio, a segunda de um modo trágico e frio.
Minhas filhas cresceram no mesmo sobrado onde vivo há doze anos. Testemunhei com a ajuda tétrica do combo “pandemia mais Bolsonaro” o crescimento de cada centímetro de unha delas. As primeiras palavras. A linguagem invadindo seus corpinhos como uma onda mansa do mar. Anotei muitas frases, e sigo anotando; vou guardar esse tesouro comigo. Como todo mundo, não sei como sobrevivemos.
Mas estamos aqui. Com cicatrizes profundas. A minha, por exemplo, é não conseguir sair muito de casa.
No meio da pandemia publiquei Os tais caquinhos e foi emocionante. O livro circulou muito e circula até hoje, apesar de não ter sido indicado a nenhum prêmio. Fiz muitas lives, podcasts e clubes de leitura on-line, o que me dava certa segurança do distanciamento. Depois trabalhei para o roteiro de uma série e escrevi meu próximo romance que sairá em março de 2026, pela Companhia das Letras. Nele, tento escarafunchar o suicídio de minha mãe dentro de uma história fictícia ― o que chamo de pseudo-autoficção.
É isso. Tudo que contei aqui não segue uma ordem cronológica e no meio do texto há muitos segredos e quase-mentiras. Não vou contá-los todos agora; quem sabe no próximo?
Prazer em ser lida por vocês, estou muito feliz de ser a mais nova colunista da Revista Cult ladeada pelos imensos Vladimir Safatle, Helena Vieira e Marcia Tiburi, entre outros. Um beijo.
Natércia Pontes nasceu em 1980, é cearense e mora em São Paulo. Autora de Copacabana dreams (Cosac Naify, 2012), (Segunda edição, Companhia das letras, 2024), finalista do Prêmio Jabuti, 2013, e de Os tais caquinhos (Companhia das Letras, 2021). É autora de outros contos publicados em edições como Granta (2023) e O dia escuro (Companhia das Letras, 2024).





