Arrigo Barnabé, o homem dos crocodilos
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Divulgação/UP Produções
São Paulo, 27 de outubro de 2024. Falta muito pouco para o público de uma casa de shows do bairro de Pinheiros ouvir a história de Clara Crocodilo, o perigoso marginal, o facínora transformado em monstro por um poderoso laboratório multinacional que não hesitou em arruinar sua vida para conseguir seus maléficos intentos.
A escuridão sobre o palco da Casa Rockambole é irrompida por Arrigo Barnabé, o homem por trás de Clara Crocodilo, vestindo uma imponente capa preta que lhe confere um ar místico. Ele, então, começa a recitar trechos do primeiro canto da Divina comédia, de Dante Alighieri, na tradução de Augusto de Campos, e dá início ao show.
A apresentação é parte de uma série de concertos que Arrigo vem fazendo na capital paulista, acompanhado de seu irmão, o baterista Paulo Barnabé, e marca um movimento de retorno do compositor aos palcos depois de um longo período de aparições ocasionais. O que tem chamado a atenção do músico é o público jovem dos shows, ele conta nesta entrevista à Cult: “As pessoas continuam se identificando completamente. Parece que não perdeu a força”.
A teatralidade costuma ser uma marca forte de suas apresentações. Segundo ele, “o palco é sempre uma celebração. No palco, estou em cena da mesma forma que um ator, como um intérprete. Então, cada música, para mim, é uma performance”.
O gosto pela teatralidade e pelas artes vem de família. Foi a mãe que incentivou os três filhos – Marcos, Arrigo e Paulo – a estudar música. “Minha mãe sabia declamar muito bem e tinha vários poemas memorizados. O meu irmão mais velho, Marcos, já falecido, ela pôs para estudar violino; depois, quando fiz dez anos, fui estudar piano, e foi a mesma coisa com o Paulo.” No entanto, “era Paulinho quem tinha mais facilidade para fazer música. Eu era uma pessoa esforçada, mais cerebral. Paulinho era espontâneo”, diz.
Todavia, ainda jovem, Arrigo voltou sua atenção para a poesia: primeiro, despertou interesse por Vinícius de Moraes, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias; depois, mais velho, por Oswald e Drummond, mas afirma sua predileção pelos concretistas Haroldo de Campos, Décio Pignatari, e principalmente Augusto de Campos.
Apesar de todo o interesse artístico, no entanto Arrigo decidiu cursar engenharia química. Em 1969, então, ele deixou a cidade de Londrina, onde nasceu, para se instalar em Curitiba enquanto fazia um cursinho preparatório. “Morava com alguns estudantes numa espelunca que se chamava Hotel Barbosa. A gente gostava muito de juntar algumas moedas para comprar O Pasquim e conversar sobre música. A ideia de se mudar para o Rio de Janeiro era muito forte”, diz Arrigo. “A gente morava em Curitiba, um lugar frio de pessoas inamistosas. A melhor faculdade de engenharia química era a Escola Nacional de Química do Rio. Então eu pensei ‘eu vou fazer faculdade no Rio e aí quem sabe lá eu tenha alguém que possa me ensinar a tocar bossa nova’”.
No entanto, não foi aprovado no vestibular no Rio de Janeiro e seguiu para São Paulo — onde seu irmão mais velho, Marcos, já cursava arquitetura na USP —, para fazer outro cursinho preparatório: “O ano que eu passei em Curitiba, no Hotel Barbosa, foi o meu primeiro fora de casa, então eu não estudei nada.”
Em São Paulo, Arrigo se instalou em uma pensão no bairro da Liberdade, onde conviveu com outros estudantes. Entre eles, o escritor Milton Hatoum e o quadrinista e ilustrador Luiz Gê, que seria autor das capas dos seus discos Clara Crocodilo e Tubarões voadores.
“Foi uma porrada chegar em São Paulo. Eu achava uma cidade feia e mal cheirosa comparada a Londrina, que era cheia de árvores. E, embora houvesse todas as pessoas que conheci, todas essas coisas novas sobre arte, literatura e história que eu descobri, tinha também a solidão de estar longe de casa”, lembra.
Por influência do irmão, Arrigo prestou vestibular e foi aprovado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Mas abandonou o curso após um semestre, em 1971. Depois de uma temporada em Londrina, onde começou a compor as canções de Clara Crocodilo com o músico e cineasta Mário Lúcio Cortes, voltou a São Paulo para cursar composição na Faculdade de Comunicação e Artes da USP. Nesse período, ficou hospedado em uma república no bairro de Pinheiros, onde conviveu com o músico Itamar Assumpção, parceiro musical de Arrigo.
“Na república Paradise havia muitos estudantes de medicina, de arquitetura e de artes plásticas. Durante seus primeiros anos em São Paulo, Itamar se hospedou lá, quando treinava no Juventus da Mooca. Depois ele participou de uma peneira na Vila Belmiro, mas logo desistiu do futebol e começou a fazer música. Ele dizia que o pessoal do Santos era muito melhor do que ele”, lembra Arrigo.
No entanto, o curso de composição gerou certo desapontamento: “Era muito fraco. Eu sentia como se eu tivesse voltado para o ginásio porque eu já tinha composto muito e ganhado muitos prêmios em festivais. Não aprendi a compor no curso. O bom foi a convivência com os alunos de música”.
Foi nessa época que entrou em contato com o teatro paulistano, com a peça O balcão, apresentada no Teatro Ruth Escobar entre 1969 e 1971, com a qual ele diz ter ficado “muito impressionado”. A peça, com texto do escritor e poeta francês Jean Genet, colocou São Paulo no mapa da vanguarda teatral ao retratar um balcão de bordel frequentado por políticos, policiais e outras figuras de poder. A montagem causou desconforto na ditadura militar, mas, mesmo com o desaparecimento da atriz Nilda Maria, em 1970, continuou sendo apresentada por mais um ano.
O compositor afirma ver com muita empolgação o teatro brasileiro atual, citando o trabalho do encenador Felipe Hirsch, que apresentou ano passado a peça Fantasmagoria IV. Arrigo diz querer voltar aos palcos, à sua maneira, após quase 20 anos se dedicando exclusivamente à composição e à música erudita. “Isso talvez tenha a ver com o fato de eu ter tido um câncer de próstata. Quando isso acontece, você passa a valorizar mais a vida e a procurar as coisas que são importantes para você. Pode ser por isso que eu tenha me sentido impelido a voltar ao palco, a fazer e assistir aos shows com aquela intensidade que a gente só consegue no palco”, diz.
Nos dias 24 e 25 de janeiro, Arrigo apresentará na casa de espetáculos Casa de Francisca um show em homenagem a Itamar Assumpção, com a banda Trisca. O show “Arrigo visita Itamar” será gravado e lançado pelo selo Lira Paulistana, em comemoração aos 45 anos da inauguração do teatro de mesmo nome, onde surgiu a Vanguarda Paulistana, movimento musical que Arrigo e Itamar ajudaram a fundar.