Vinicius e a lírica da sedução
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Não houve na literatura brasileira poeta mais querido do que Vinicius de Moraes. Carlos Drummond de Andrade, em entrevistas, não perdia a oportunidade de dizer que invejava o poetinha. João Cabral de Melo Neto, que chegou a editá-lo num livrinho impresso em Barcelona, pelo próprio pernambucano, também dizia admirá-lo. Outros amigos, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade, não ficaram de fora desse rol de admiradores – e estes dois, vale dizer, foram figuras fundamentais para o amadurecimento poético de Vinicius de Moraes.
Essa qualidade do poeta vinha, talvez, de sua sedução – a linguagem de Vinicius nas duas fases de sua obra, ou seja, na da poesia transcendental do início e na poesia posterior, que se encontra com a realidade e nela forja sua matéria, é eivada de sedução. Algo nela seduz completamente o leitor, o qual logo se vê envolvido pelo mundo criado por ele. Hoje, quando se comemoram os noventa anos de seu nascimento [atualmente, 111 anos], se percebe que a obra poética de Vinicius ainda foi pouco avaliada e analisada. Muito disso se deve, com certeza, ao fato de, em certo momento de sua carreira, Vinicius ter migrado para a canção popular, em que foi, certamente, um dos maiores letristas e compositores, expandindo sua obra e incorporando a ela o universo das canções. Um lado que logo se tornou folclórico da personalidade de Vinicius veio à tona e, de alguma forma, obnubilou a inventividade de sua obra poética. Ou a atenção que ela continua a merecer.
Para muitos, principalmente os da minha geração, Vinicius é o poeta da mulher amada, da paixão sem remédio e dos sonetos impressionantes, cuja técnica ele dominava como poucos, e também como poucos soube incorporar a essa forma tradicional a naturalidade da linguagem limpa e sedutora, que, muito provavelmente, ele tomou emprestado do cancioneiro popular. É também o poeta dos diminutivos, cujo uso pode tornar um poema piegas e melado, porém ele os usou como artista, que só se apropria de alguma coisa quando esta é necessária para sua expressão. Não era modismo nem tique de linguagem: era necessidade estética.
Sua trajetória na poesia brasileira é bastante atípica, pois ele demorou a aderir às pesquisas formais e sociais advindas do Modernismo, ou seja, às de preocupação com a realidade brasileira. Mas foi justamente no momento em que Vinicius se encontrou com Manuel Bandeira e Mário de Andrade que sua poesia ganhou força e se destacou na lírica nacional. O próprio Mário, num artigo brilhante, fez questão de sacudir o poeta. Criticava, em Novos poemas, livro de 1938, “as antíteses cheirosamente fáceis”, o preciosismo desnecessário, e analisava, com rigor, as obras anteriores, cujo gosto pelo misterioso e pelos versos longuíssimos desfibrava sua poesia. Porém, já destacava a corajosa mudança de rumo na poesia de Vinicius, que começava a adentrar em sua matéria: “Um sopro novo de vida real e de maior objetividade veio colorir aquele hermetismo um bocado exangue que havia dantes, e no meio do qual, aliás, o poeta já conseguira dar mostra da sua esplêndida qualidade lírica”.
Essa guinada poética de Vinicius continuou ainda no livro posterior Cinco elegias, de 1943 – em que ele chegou, inclusive, a radicalizar com a linguagem poética, como acontece na atordoante “A última elegia”, misturando inglês com português, espacializando o verso, aglutinando palavras à maneira joyceana, tudo isso num ritmo alucinante, enquanto observa de seu apartamento em Londres os telhados do bairro de Chelsea. Na obra de grandes poetas, há sempre esse momento de virada, de ajuste, em sua matéria poética. Feito isso, ele se sente mais livre para encarar o seu tema, a realidade que o cerca. Isso aconteceu com Vinicius que, logo depois, em 1946, lança Poemas, sonetos e baladas, uma obra definitiva, fundamental, e que incorpora todos os ganhos da pesquisa estética modernista e, principalmente, deixando de lado a visão totalizadora do “Poeta”. Agora ele é o homem comum, que fala dos filhos, das “jovens putas da tarde” do mangue, que se alumbra com as “transitórias estátuas/ Esfuziantes de azul” das meninas de bicicleta, que escreve poemas para os amigos – Pedro Nava, Manuel Bandeira, Rubem Braga, e se despede do amigo Mário de Andrade, “vivo na imortalidade”.
Haveria muito ainda a dizer sobre a poesia de Vinicius. Sua facilidade para as baladas e os sonetos, seu ritmo de onda e mar, suas tantas passantes baudelairianas (a “geografia fantástica do corpo feminino”, como escreveu Antonio Candido) e seu imenso carinho pelo ser humano. A poesia de Vinicius tinha essa profundidade e toda essa graça – a graça de fazer poemas ditados pela circunstância da vida, despretensiosamente, como aqueles que ele deixou solto em suas crônicas, que normalmente não entram nas antologias, mas que ressaltam a qualidade do poeta. Impossível não se lembrar de seu encontro, bêbado, com a sombra de Apollinaire, na Pont Mirabeau, ou o poeminha circunstancial para uma namorada, numa casa de chá. Como disse Drummond na ocasião da morte de Vinicius: “Um poeta não se substitui. O poeta é um ser que veio dizer ao mundo uma palavra de beleza, esperança, revolta e estímulo. Quando desaparece, fica um vazio. Mas fica também tudo o que ele fez de bom e de belo”.
Texto originalmente publicado na Cult n. 73 (outubro de 2003).
Heitor Ferraz Mello é jornalista e professor. Mestre em literatura brasileira pela USP, publicou, entre outros livros de poemas, Coisas imediatas (1996-2004), Um a menos (2009) e Meu semelhante (2016), todos pela 7Letras