Manoel de Barros relança Arranjos para assobio e fala de sua obra poética
“Criar começa no desconhecer.” É assim que o escritor Manoel de Barros explica uma poética que tem justamente no Livro das ignorãças um de seus marcos mais importantes; uma poética que apreende a essência dos objetos e dos homens desautomatizando a linguagem, “desexplicando” o mundo para melhor captar — e recriar — seu mistério. O resultado paradoxal é uma obra que manifesta intensa consciência da linguagem literária por trás do universo mato-grossense do poeta, cuja matéria-prima são o rumor das águas e dos sapos, a existência primitiva de lesmas e pedras. Com 13 livros publicados, Manoel de Barros goza de prestígio cada vez maior. A Record, que está relançando seus títulos, acaba de publicar Arranjos para assobio. Além disso, o poeta acaba de entregar à editora os originais de seu novo livro: Retrato do artista quando coisa. Nascido em 1916, na cidade de Cuiabá, Manoel de Barros mora numa casa em Campo Grande, onde nos recebeu para uma conversa sobre sua literatura. Conforme seu hábito, porém, ele só dá entrevistas por escrito — o que faz com que suas respostas, reproduzidas a seguir, preservem o tom peculiar do “barrismo”.
O escritor José Maria Cançado afirmou que o “barrismo”, que ameaçava a obra de Manoel de Barros até o Livro das ignorãças, já não aparece mais no Livro sobre nada. Esse “barrismo” é a força de seu estilo ou uma restrição de sua obra?
Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só uma elaboração verbal. É uma força que deságua. A gente aceita um vocábulo no texto não porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta é dar ressonância artística a esse material. Penso que combinar o sentido com os sons é que produz o estilo. O barrismo há de acontecer nos meus textos porque vem de eu ser, de eu estar, de eu ter sido. Não há fugir. Estilo é estigma. É marca. Todo estilo contém as nossas ancestralidades. Ninguém consegue fugir do erro que é, do acerto que é. Vou ser sempre o que me falta. De forma que vou cair sempre no barrismo porque a gente é sempre uma falta de nós. Papel do poeta seja sempre o de obter o que falta nele. E falta tudo. Papel do poeta é o de obter uma linguagem que o complete. Esse objeto de linguagem que me completa há de ser meu estilo. O barrismo será sempre uma expressão de mim. Sou fiel ao erro que sou.
Para o senhor, como está a poesia nesse final de milênio?
O que progrediu foi a informação. A poesia está no lugar de quando Homero, de quando Shakespeare. Poesia não depende de informação. Informação não aumenta nem diminui a poesia. Aliás, pode diminuir se o poeta se meter a dar informações através de seus versos ou de suas cores, ou através de sua música. O que enriquece o ser poético são os mistérios do homem. E os mistérios do homem não informam. A palavra poética não será nunca um instrumento de informações senão que sempre um instrumento de encantações de celebrações. Onde a palavra poética chega a informação não alcança. Poesia é essência. Informação é casca. O poeta cria. A informação divulga. Há um lado do homem que precisa da informação para se cumprir. Há outro lado do homem que precisa da poesia para se completar. Porque a gente é incompleta. Porque a gente é uma falta. Informação preenche a necessidade de estar. Poesia preenche a necessidade de Ser. Enquanto a gente não virar robô a poesia é necessária. Precisamos do feitiço das palavras e não da casca das palavras.
Alguns críticos dizem que sua obra é elitizada e difícil, tendo saído só recentemente do meio restrito dos intelectuais. Como foi a descoberta de um público mais amplo para sua poesia?
Escrevo meu avesso in-verso; por isso não sou de entendimento linear. Sou um ser difícil, contraditório, inseguro. Sou um antro de incertezas. Sou complicado. Por isso, em vez de dizer: Sou ávido de seu beijo, eu digo: Estou com febre em sua boca. As duas frases dizem a mesma coisa. Só que a primeira frase é reta, sem metáfora. E a segunda é curva, com enleios. Meus leitores têm que ter enleios, têm que ser enrolados por dentro para acompanhar as curvas que os meus versos fazem. Que as metáforas fazem. Sou difícil porque escrevo por de dentro. Acho que foi o Millôr Fernandes quem me mostrou primeiro ao grande público. Millôr, nos anos 70 e 80 tinha colunas respeitadas nas revistas Veja, Istoé e no Jornal do Brasil. Ali sempre exaltava a minha poesia. Pedia que me lessem. Recomendava. Sou grato ao Millôr e ao Antônio Houaiss, ao Ismael Cardim, ao Antônio João, ao Fausto Wolff que também falavam bem de minha poesia em suas colunas de jornais. Acho que foi nos começos dos anos oitenta que começaram os intelectuais a me ler. Depois fui contratado pela editora Civilização Brasileira que publicou minha obra quase toda em 1990. Agora a Record, de quem sou contratado, está reeditando todos os meus livros separadamente. Estou remetendo ainda este mês à Record meu novo livro de poemas que tem o título definitivo de Retrato do artista quando coisa (uma alusão visível ao Portrait of the artist as a young man, do Joyce). Só não serei jovem nos poemas — serei Coisa.
Qual é o papel de Bernardo da Mata (alter ego de Manoel de Barros) em sua obra ?
Bernardo há de ser uma vontade em mim da inocência perdida. Uma vontade em mim do primitivo. Uma vontade em mim da despalavra. Uma vontade de conhecer o mundo só pelo rumor das palavras. Bernardo é a palavra encostada à natureza. Encostada aos mitos. Encostada à invenção. Talvez tudo que dentro de mim quer ser natência, quer ser pré-coisa. Bernardo me lembra Tirésias, o cego adivinho de Édipo. Tirésias podia prever através do vôo dos pássaros os caminhos de Édipo. Ele tem a sabedoria das fontes. Quero esclarecer que Bernardo não é um heterônimo, não é um pseudônimo, não é ficção. Se trata de um ser humano aonde a poesia mora. Ele existe e está pronto a traste e está pronto a poema. Bernardo faz o papel de meu guieiro. Ele já me ensinou a conversar com as águas, com as árvores, com as aves. E me ensinou a não saber mais nada. (Agora eu já sei) Acho que tudo o que eu não tenho coragem de falar usando as minhas palavras eu falo usando os silêncios de Bernardo.
A ignorância é matéria de poesia?
Para efeito de poesia: o que chamo de ignorância é assim; a gente enterra tudo o que aprendeu nos livros debaixo de um pé de pau, atrás de casa. Depois dá-se uma mijada em cima para produzir frutos. Isso faz a gente chegar perto da ignorância. Faz a gente chegar perto do menino que foi, do tonto que é, e do poeta que pensa ser. Faz a gente chegar perto de ser pássaro. Isso faz a gente chegar perto do início das águas, do início do mundo. Isso faz a gente chegar perto das desexplicações e mais longe dos conceitos. E mais longe do saber abstrato. Melhor ser as coisas do que entendê-las. A mais pura ignorância é saber explicar o caminho dos pássaros, das águas, das pedras, dos sapos. É estar no início onde tudo ainda não foi explicado, é estar no reino de poesia. Aqui a gente só sabe pelos ventos, pelo sol, pelas chuvas, pelo sons, pelas formas, pelos cheiros. Quando a gente ainda está em estado de árvore é que pode sentir os enleios dos cantos. E enxergar os perfumes do sol. A ignorância que constrói a poesia não é um estado mental — é um ato de sensibilidade. Criar começa no desconhecer.
A cada tempo surgem novas gírias, novos vocabulários. Na sua opinião, essas gírias deformam a poesia e o idioma ou os enriquecem?
Aceito as gírias com alegria. São maneiras que o povo encontra de brincar com o idioma. No falar cotidiano aceito todas, mas, no escrever, uso o mesmo cuidado que Mestre Aurélio usava. Antes de registrá-las em seus léxicos, o Mestre esperava que o tempo sedimentasse a gíria na alma do povo. Que o tempo provasse que a gíria tinha mesmo que ver com as raízes do povo. Ou se eram gags somente. Sei que, enquanto viveu, Mestre Aurélio dispunha de equipes de linguistas nos lugares mais distantes do país, encarregadas de descobrir as gírias que houvessem criado raízes na alma do povo. Só então as dicionarizava. As gírias, quando já sedimentadas na alma do povo, podem servir à poesia como quaisquer outros termos.
O filme Caramujo-flor, do cineasta Joel Pizzini, mostrou em outra linguagem a sua obra. Qual a sensação de ver a poesia e a vida de Manoel de Barros no cinema? A poesia saiu fortalecida ou enfraquecida frente às câmeras?
Estou certo de que Joel Pizzini quis falar de minha poesia antes que de mim. O filme quer expressar por imagens uma escrita poética. Joel quis dar uma ideia de minha linguagem e não de minha vida. Minha vida não tem nada com os jacarés nos trilhos de uma estação; mas a minha linguagem tem. Um jacaré andando sobre trilhos é tão insólito como renovar as mesmices. Penso que Joel quis mostrar isso. Botou as lesmas lentas e gosmosas dentro de casa. Mas o lugar das lesmas lentas e gosmosas é subindo pelos muros leprentos das casas. O filme tem muito de minha arte e nada de minha vida. Ainda bem.
O chão, que é objeto frequente em sua poesia, é também motivo de uma guerra civil na sociedade atual. Para o senhor é legítima a luta do movimento dos trabalhadores sem-terra, MST?
Sim, é legítima a luta dos trabalhadores sem terra. Penso que as terras ociosas devem de ser ocupadas: não pela força física, mas pela força das leis. As terras improdutivas devem ser legitimamente desapropriadas. Para ser bem possuída, a terra precisa de receber o amor e o suor de quem a possua. Precisa de cumprir uma função social. Não sendo assim é esbulho.
Muito se fala sobre o poeta e pouco sobre a pessoa Manoel de Barros. Para o senhor, a pessoa não é matéria para imprensa? Há um abismo entre esses “Manoéis”?
Sim, absolutamente sim. O que importa, no caso desta entrevista, é o poeta e a sua poesia. Agora eu sou estar no mundo como um ser de linguagem. O outro é um fazendeiro. O fazendeiro produz carne. O poeta produz poemas. O trabalho do fazendeiro é feito de a cavalo. O trabalho do poeta é feito a lápis. Enquanto os touros fazem bezerros, os poetas fazem coisas que se desmancham no ar. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento.