Francis Ford Coppola: A escrita literária em imagens
foto por Mário Miranda Filho
Aos 85 anos, o cineasta americano Francis Ford Coppola mantém dois hábitos diários: ler e ouvir música. “Desde que minha mulher (Eleanor) morreu (em abril passado), eu enfrento a solidão com esses dois passatempos”, disse o diretor à Cult, durante a série de entrevistas individuais que concedeu em São Paulo, onde esteve para promover seu mais recente filme, Megalópolis, que encerrou a Mostra Internacional de Cinema. Sem disfarçar um certo enfado por responder inúmeras perguntas sobre assuntos semelhantes, especialmente políticos, Coppola surpreendeu-se quando questionado pela revista sobre literatura – a ponto de ultrapassar o tempo máximo da conversa (10 minutos) para responder devidamente.
Antes da entrevista, o cineasta quis saber o nome de um autor brasileiro que merecia ser lido. Ficou satisfeito ao ouvir um pouco sobre a trajetória de Jeferson Tenório e de que seu livro O Avesso da Pele tem tradução em inglês. Em seguida, emendou com outra pergunta: Jorge Amado continua bem lido no Brasil? Não pareceu gostar de ouvir que “já foi mais” e, antes de a entrevista oficialmente começar, comentou ter gostado de Dona Flor e Seus Dois Maridos.
O senhor dirigiu diversos filmes inspirados em obras literárias, como O Poderoso Chefão, Drácula e Apocalipse Now, para citar alguns. Como uma obra pode interessá-lo a ponto de transformá-la em um longa?
A trama precisa trazer, além de uma boa história, reverberações políticas e sociais, que a tornem mais complexa. O fio da meada é meu interesse pelo assunto principal. Por exemplo, O Poderoso Chefão trata basicamente de sucessão familiar. Esse é o ponto de partida para inspirar o roteiro. Em seguida, vem a tarefa de transformar a escrita literária em imagens. Claro que não é possível filmar todas as cenas de um livro. No original do Chefão, por exemplo, o clímax que é o assassinato de todos os inimigos de Michael Corleone ocupa várias páginas. A solução que encontrei foi alternar as cenas das mortes com a do batizado da sobrinha de Michael, um trabalho de edição. Confesso que, na época (1972), não fiquei muito satisfeito, mas hoje se tornou uma cena clássica do cinema. Em outros momentos, a obra original inspira minha forma de filmar. Quando o livro Drácula foi publicado em 1897, o cinema estava nascendo, portanto utilizei os mesmos escassos recursos da época, que eram a mágica e os atores, para fazer a minha versão. Por isso que os efeitos especiais parecem ter sido feitos à mão, artesanais mesmo. E, como gosto muito de escrever, sei o trabalho que dá criar uma obra literária e faço questão que o título do filme venha acompanhado do nome do autor do livro: O Poderoso Chefão de Mario Puzo e Drácula de Bram Stoker. Meu nome aparece em seguida.
O roteiro de Megalópolis, assinado pelo senhor, faz lembrar a obra de Gore Vidal, que também escreveu sobre a construção do império americano a partir de obras que interrogavam as normas sociais e sexuais que ele percebia como impulsionadoras do American way of life. Ele foi inspirador na sua escrita?
Certamente, foi uma honra tê-lo conhecido pessoalmente e muitos de seu livros me inspiraram quando planejava o roteiro de Megalópois, como Juliano sobre o imperador romano que tentou restabelecer o politeísmo de Roma para combater o cristianismo. Ele entendia muito da história antiga e de como ela se relaciona com os dias atuais, que é o cerne do meu filme. Como trabalhei com a ideia de Megalópolis durante 40 anos, tive a oportunidade de mostrar um esboço do roteiro para Vidal que, curiosamente, não achou interessante. Na verdade, não tenho o mesmo talento que Steven Spielberg, Roman Polanski e William Wyler, de visualizar uma história antes de ser filmada e, com isso, empolgar a imaginação de quem está escutando. Eu preciso reescrever muito até chegar no momento de encantamento.
Ao comentar sobre seu roteiro, aliás, o senhor fez referência a Finnegans Wake, o último romance de James Joyce, publicado em 1939, e um dos grandes marcos da literatura experimental. Por que?
Em Finnegans, Joyce escreveu com uma linguagem composta pela fusão de outras palavras, em inglês e outras línguas, buscando uma multiplicidade de significados. Não foi compreendido na época e ele sabia disso, acreditando que o livro seria estudado por pelo menos 100 anos. O engraçado é que ele estava pensando na venda do livro durante esse período e não propriamente na sua compreensão. Mas fiz a mesma coisa com Megalópolis. O roteiro, muitas vezes tachado de confuso, abriga todas as ideias que julguei necessárias para a história, ciente de que, com o tempo, as pessoas descobririam. Faço filmes para mim mesmo e alguns colegas, que espero que gostem do que fiz. Sei que é um projeto ambicioso e custoso (cerca de US$ 140 milhões), algo que foi feito antes por um gênio da comédia, o francês Jacques Tati, que gastou uma fortuna com Playtime – Tempo de Diversão (1967). Ele aplicou tudo o que tinha naquele filme, que foi um fracasso naquele momento. Hoje é considerado uma obra-prima. É assim que funciona: o que é vanguarda no passado torna-se rotineiro no presente. Por isso, eu me vejo como um jovem estudante de 85 anos, que não acredita em fazer arte sem correr riscos. Seria a mesma coisa que ter bebês sem fazer sexo.
O senhor já se declarou um grande leitor. Poderia, então, sugerir a leitura de alguns livros?
Sim, gosto muito de ler, especialmente para me abastecer de ideias para a escrita dos meus roteiros. Eu me interesso por obras que refletem sobre o nosso tempo e, sem exageros, pensem também no futuro. Daí a importância que vejo em Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari, que aborda a história da humanidade sob uma perspectiva inovadora e nos convida a pensar.
Ubiratan Brasil é jornalista especializado em cultura, editor de conteúdo do Canal MF.