Ver e não ver a catástrofe: Notas sobre a fragmentação

Ver e não ver a catástrofe: Notas sobre a fragmentação
Anadolu Ajansi

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Em 1936, Aldous Huxley publicou seu sexto romance, intitulado Sem olhos em Gaza. Através de um diário, acompanhamos o jovem inglês Basil Seal, em uma narrativa que busca produzir sentido na realidade fragmentada e marcada pela desilusão em plena Primeira Guerra Mundial. Gaza figura no livro simplesmente como símbolo da impossibilidade de ver a catástrofe em curso. O título parece ser emprestado da frase que abre o livro e faz referência a Samson Agonistes, drama do poeta John Milton (1671), que relembra o trágico destino de Sansão: “Eyeless in Gaza at the mill with slaves”. Figura bíblica, Sansão foi feito prisioneiro pelos filisteus, que lhe arrancaram os olhos e o enviaram a Gaza, onde foi condenado a virar a pedra de moinho da prisão. Teria sido Huxley profético novamente? 

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O historiador, poeta e ensaísta palestino Elias Sanbar conta que tinha catorze meses na ocasião da Nakba, em 1948, quando partiu com sua mãe em um comboio do mandato britânico que levava mulheres e crianças para o Líbano. Seu pai e uma de suas irmãs decidiram ficar na cidade natal se unindo às forças de resistência. No Líbano, o bebê Sanbar e sua mãe foram recebidos por uma avó que já havia se instalado previamente em Beirute e, por isso, não foram viver em campos de refugiados como a grande maioria dos palestinos expulsos na ocasião. Ao chegarem, a mãe de Sanbar conta que ele teria ficado cego, isto é, suas pálpebras haviam se colado e os olhos do bebê não abriam mais. Ao procurar um médico, sua mãe escutou que teria transmitido seu próprio terror para o filho e que aquilo deveria passar dali algum tempo. Em alguns dias, Sanbar voltou a abrir os olhos e a enxergar. Essa parece ser uma história fundadora do percurso de seu exílio que data da fundação do Estado de Israel e que levou à expulsão de mais de 750 mil palestinos de sua terra natal. Mais de setenta e seis anos de um exílio que seus pais acreditavam que seria temporário. 

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Há mais de vinte anos, um fenômeno fora do comum interpela o sistema de saúde e de acolhimento da Suécia. Crianças refugiadas de famílias ameaçadas de deportação, subitamente entram em estado profundo de apatia, algumas próximo ao coma. Não abrem mais os olhos, não andam, não falam ou se alimentam. São centenas de casos que levaram à designação da resignation syndrome (síndrome da resignação). Essa condição pode durar meses ou até mesmo anos e parece se disseminar na realidade migratória sueca como contágio entre crianças e adolescentes. Na maioria dos casos, quando o estado grave de saúde é capaz de reverter o processo de expulsão ou até mesmo promove o deferimento da solicitação de refúgio pelo governo sueco, as crianças pouco a pouco recuperam quase que inteiramente suas capacidades vitais. Primeiro, voltam a abrir os olhos, em seguida a falar, se alimentar, andar. 

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Ashla’a é uma palavra árabe que tem sido empregada pelos habitantes de Gaza para descrever um mesmo fenômeno, traduzido como: partes do corpo espalhadas e carne desmembrada. Segundo a intelectual palestina Nadera Shalhoub-Kevorkian, o atual estágio genocidário de palestinos bombardeados, famélicos e sob destruição massiva, suscita um questionamento sobre o significado político atribuído ao corpo morto do colonizado. Partes do corpo espalhadas, sobreviventes carregando os restos mortais de seus parentes em sacos plásticos, sem ambulâncias, sem enterros, sem possibilidade de ritualização. Trata-se da brutalização da perda. O corpo morto aí não pode mais ser velado apropriadamente, sem unidade, não pode ser coberto, enterrado ou sacralizado coletivamente. Pedaços de carne e ossos expostos e eventualmente reunidos em sacolas plásticas, sem metáfora, eis a imagem da perda em Gaza. Brutalização da morte que revela as práticas da violência colonizatória do luto e da inviabilidade da vida. Para Shalhoub-Kevorkian, as partes do corpo no solo de Gaza ou os sacos de corpos colonizados expõem a estratégia insaciável de uma colonização que torna inatingível o conceito de unidade palestina. Fragmentação da morte, brutalização da perda, dispersão do corpo. Trata-se do intento genocidário de redução da Palestina em Ashla’a através da hierarquização racial do luto.

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Living under the rubble. Sem metáfora. A vida é bombardeada, e os restos mortais espalhados, há corpos nos escombros. A arqueologia do horror e o presente aqui não são hipérboles. Os azulejos de Adriana Varejão são impossíveis depois das cenas de Gaza. Inhotim de algum jeito também desmorona. Não há representação. Temos os olhos em Gaza, e não há metáfora possível. There is flesh under the rubble e não é possível escrever essa frase em português. Os mortos não podem ficar calados. É preciso o recurso à língua imperial para ser escutado? O poeta palestino Mohammed el-Kurd pergunta: wich me will survive? Ou ainda sobre um jovem garoto diante da destruição: wich man he will be? Denuncia-se a morte das crianças, são os inocentes, mas e os homens, aqueles que também pegam em armas para lutar? Sobre as vítimas imperfeitas, El-Kurd reivindica o direito à fúria, às chamas. Por que mesmo que tudo não para? Qual a zona de interesse em jogo?

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A prática de vendar os olhos de prisioneiros palestinos tem sido amplamente empregada por soldados israelenses. Não apenas no momento de captura ou deslocamento de detidos.Trata-se de uma técnica de tortura: vendar os olhos também por longos períodos em cativeiro. Os impactos destrutivos são notáveis. É um ato de privação sensorial que, segundo a psiquiatra e psicoterapeuta palestina Samah Jabr, tem consequências psíquicas e fisiológicas perenes: lesões oculares, estados profundos de dissociação, vulnerabilidade e dor. Sobreviventes relatam a indiferenciação do dia e da noite, também a impossibilidade de dormir por longos períodos ou de suportar a escuridão. Para alguns, após serem desvendados, as pálpebras não se fecham por algum tempo. Vemos sobreviventes que saem da prisão desfigurados com seus olhos arregalados, em choque, não piscam mais. Seria o vendado aquele que teria visto demais? 

Para Samah Jabr, soldados israelenses vendam os olhos dos palestinos para se protegerem eles mesmos do olhar de um palestino ou de qualquer possibilidade de troca visual estabelecida sobre o próprio ato. Mecanismo de defesa que, segundo ela, permitiria aos soldados um distanciamento possível dos impactos de suas próprias práticas de brutalização sobre eles mesmos.

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No filme Zona de interesse (Glazer, 2023), Hedwig, a mulher do comandante de Auschwitz, Rudolf Hoss, cultiva seu imenso jardim de flores, frutos e ervas a poucos metros do maior complexo concentracionário e de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial no sul da Polônia. Apenas um muro os separa. No enredo, somos levados à intimidade cotidiana de uma família que usufrui diretamente da produção do extermínio de um povo. Rudolf Hoss foi o homem escolhido por Hitler para comandar Auschwitz a partir de 1940, onde implementou testes de armas letais e químicas, além da engenharia das câmaras de gás contra milhares de judeus. 

A casa parece idílica, há uma piscina onde as crianças podem usufruir do verão, uma grande estufa para flores e plantas, quartos e acomodações confortáveis, empregados e fartura de comida. Semanalmente, a família recebe remessas de joias, dentes de ouro, casacos de pele e outros pertences de valor roubados das pessoas encarceradas para extermínio. No filme, podemos imergir na vida cotidiana dos que suportam a barbárie e vivem dela. Das janelas, vê-se a fumaça dos crematórios que ganha os muros. A casa parece funcionar adequadamente, mas as fissuras de sua estrutura são nítidas como o negativo de uma fotografia. O horror se impregna em cada quina. 

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Sobre o não ver, Marcia Tiburi fala daquilo que “deve permanecer oculto para sustentar o regime do visível”. O ver teria suplantado o ter, tudo figura em torno das aparências. Ao permanecer no espaço permitido pela “administração do não ver”, ninguém pode efetivamente ver o que se passa, mesmo quando acha que pode. Cúmplices, todos participam da catástrofe, seja na Shoah – como no filme – ou em Gaza.  

Gaza é o enclave do mundo. Laboratório atual de práticas de extermínio e inviabilização da vida, é possível não pensar na Gaza pré e pós-7 de outubro de 2023. A hipótese de Elias Sanbar é a de que o sete de outubro se tornou o primeiro movimento de um peão em mais uma partida de xadrez. Mas podemos sempre contar a longa história da faixa de Gaza que, desde a evacuação dos assentamentos judaicos em 2006, se tornou uma prisão a céu aberto. Faixa de terra que concentra a maior densidade populacional do mundo e que tem suas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas controladas por Israel, assim como a entrada de suprimentos, medicamentos e recursos básicos de sobrevivência. Dois terços da população de Gaza são de refugiados palestinos da Nakba. Para o escritor Mohammed El-Kurd, Gaza é território sitiado, mas não cativo. Por isso também, pela primeira vez na história, é possível presenciar um genocídio transmitido em streaming. Isto é, em contranarrativa, palestinos transmitem das telas de seus celulares – que são carregados em instalações de energia improvisadas e com parca conexão de internet – o cotidiano a que estão submetidos: bombardeios constantes, armadilhas de deslocamento, falta de água limpa, comida, contágio de doenças, destruição da infraestrutura básica e as mais tecnológicas estratégias de aniquilação em massa.

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Em La voix de ceux qui crient, Saglio-Yatzimirsky parte da distinção de dois tipos de silêncio presentes nas consultas de psicotraumatologia. Um deles é psicologicamente intolerável: trata-se de um silêncio específico do trauma, mortificante, danificado pela angústia, que não leva a nenhum compartilhamento de significado e prende o sujeito a si mesmo. É o silêncio da invasão traumática, sem contra-excitação. Esse silêncio, como uma “palavra poderosa e congelada” – como diz Appelfeld –, é o de um ser apanhado pela morte. 

Já outro tipo de silêncio é aquele não definitivo. Guiado pela pulsão de vida, configura-se em uma recusa de falar, uma reação ao outro invasivo, uma defesa por parte do paciente, que é assim constituído como sujeito. O trabalho terapêutico geralmente começa com uma tentativa de sair do silêncio mortificante, esse do abismo do trauma que arruína qualquer espaço para a troca. Por outro lado, o silêncio mais sintomático, que se refere à história do sujeito e à necessidade de permanecer em silêncio para se proteger, é um silêncio que constitui o diálogo.

Qual a natureza do silêncio em torno da questão palestina? A destruição de uma população ultrapassa as dimensões da guerra e suas leis. A imoderação da catástrofe está presente em sua etimologia. Paul Laurent Assoun nos lembra que a etimologia da palavra catástrofe no grego remete à inversão. Aqui, temos também a inversão de escalas e de todas as dimensões que podem ser apreendidas. É difícil dizer que não sabíamos, não há o benefício da dúvida. Todo o espaço-tempo específico dessa catástrofe é imediatamente acessível por meio de imagens ao vivo.

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Em Le garçon qui voulait dormir, Erwin, o protagonista e alter ego de Aharon Appelfeld, um sobrevivente dos campos de extermínio, encontra-se na Itália e depois na Palestina Britânica. Quando a Agência Judaica o recruta para trabalhar com jovens judeus para fundar o futuro Estado de Israel, Erwin adormece. Enquanto começa a aprender seu novo idioma, o hebraico, dormindo ele redescobre sua língua materna, o iídiche, e tenta se comunicar com seus pais, mesmo sabendo que seu idioma está fadado ao desaparecimento. Não se trata de um sonho, mas do sono, um estado diferente de consciência que nos permite abordar a jornada e as transformações da realidade de outra forma..  

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Por que o jovem de Mossul, que narra ter sido torturado pelo Estado Islâmico e pelas forças iraquianas, esconde os olhos da câmera do jornalista de guerra? Qual o olhar que não pode ser mostrado? Recusa em se desmontar – o que violaria mais uma vez a honra inscrita nos olhos do pesadelo? Ou ainda, recusa do voyeurismo de um terceiro que capta o trauma sem filtro e congela a violência em sua brutalidade? No mito de Medusa, a troca de olhares petrifica o observador até a morte. Aí temos uma definição de medo.

Robert Antelme, ao sair de Dachau em 1945, disse: “Vimos o que os homens ‘não devem’ ver; isso não pode ser traduzido em uma linguagem”.

Na Palestina, nós vemos e sabemos; as condições de enunciação são, portanto, diferentes daquelas da Shoah. O mundo inteiro viu e sabe; por que o silêncio – já que as imagens são traduzíveis pela linguagem, e são de fato traduzidas pela mídia, por intelectuais, por civis e governos? Seria a escala incomparável da violência, em termos de sua intensidade e imediatismo, que nos impede de formar uma narrativa de condenação, de nos mobilizarmos coletivamente? É a violência que corrói o discurso e o impede? Violência relacional que envolve o coletivo, o Estado, as comunidades, os grupos étnicos ou religiosos; ela é política desde o início.  

De que ordem é o silêncio que não funda lugar para ser inscrito? No entanto, sabemos dos ecos históricos refletidos na presença de várias gerações. A destruição da Palestina envolve gerações na destruição. Trata-se de uma guerra transgeracional. Aqui, a falta de uma resposta (no sentido de Levinas – e do compromisso com a responsabilidade) redobra a primeira violência, a do silêncio, e produz outra: a violência epistemológica e a violência ética: a do não reconhecimento.

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Em Infância em Berlim por volta de 1900 e Rua de sentido único (1928), Walter Benjamin se refere à forma dos “pequenos pedaços” e das “imagens de pensamento”. Foi Adorno quem esclareceu a dupla dimensão dessa escrita fragmentária (2001): acabar com o pensamento conceitual tradicional e, para isso, adotar o fragmento, aquele capaz de chocar, de estimular “a energia do pensamento” e de “incendiar as coisas”. Alusão ao combate e à destruição, junto ao relevo conceitual no uso do fragmento. 

Poderia a escrita fragmentária se aproximar da catástrofe? Rejeitando a narrativa linear não há qualquer autor identificado. Uma escrita fragmentária que suscita seus pontos críticos, os de uma modernidade em crise: tanto a crise da obra quanto a crise do sujeito. Uma catástrofe não pode dar origem a uma obra de arte. Não há dissertação possível. Aqui o fragmento é o remanescente, a lasca, o estilhaço, o desperdício. É também fratura, dilapidação, fissura e esquizofrenia. Snipers israelenses miram precisamente as pernas de crianças palestinas. Esse é o alvo: fragmentar o corpo. One nation under surveillance, another in psychosis, diz Mohammed El-Kurd. Silêncios e vazios se convertem em inscrição oca da perda e da morte. Pode o fragmento falar dos corpos dilacerados?

Ana Gebrim é psicanalista e socióloga e trabalha em São Paulo. 

Marie-Caroline Saglio-Yatzimirsky é antropóloga e psicóloga e trabalha em Paris. 


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