Descriminalização da maconha: vinho novo em odre velho
(Wesley Gibbs/Unsplash)
Há muito pouco a comemorar na decisão do STF que descriminalizou a posse da maconha. O artigo 28 da Lei 11.343/06, objeto do julgamento, tipifica a posse de qualquer droga, mas o STF limitou a declaração de inconstitucionalidade (contra o voto do relator Gilmar Mendes) apenas à maconha. Arbitrariamente, sem fundamento lógico-jurídico minimamente considerável. O argumento dos autores do recurso (Defensoria Pública paulista) consistia na violação do direito fundamental à intimidade e à privacidade e na violação do princípio da lesividade porque a conduta não afeta interesses de terceiros, diz respeito apenas ao próprio portador. Evidentemente isto se aplica a qualquer droga.
O limite de 40g para distinguir usuário de traficante vale “até que o Congresso venha a legislar a respeito”. Tudo fica remetido, em última instância, ao pior parlamento da História do país, seguramente um dos piores história de qualquer parlamento do planeta, povoado de desqualificados de extrema direita sequiosos para explorar a pauta de costumes.
Há uma galática distância entre o mundo dos conceitos e normas jurídicas e a realidade, sempre ocultada pela nossa invencível e provecta bacharelice. Como o aparato repressivo do Estado, polícia, promotores e juízes, vai aplicar a decisão do STF?
Recomenda-se a leitura de “Sentenciando o Tráfico: o Papel dos Juízes no Grande Encarceramento”, de Marcelo Semer. O autor examinou cerca de 800 sentenças de todo o país. Constatou que a maioria dos réus são pobres, primários e sem antecedentes; as quantidades de drogas apreendidas são mínimas; as condenações atingem a impressionante marca de 80%; usa-se desmesuradamente prisão antes da sentença.
É essa estrutura repressiva que tem como foco o padrão “preto – pobre” que vai distinguir entre usuário e traficante. O limite de 40 g é apenas um dos critérios para diferenciar usuário de traficante. Se a posse for em quantidade inferior, ainda assim o portador pode ser enquadrado como traficante caso, por exemplo, tenha uma lista de endereços – que poderá ser até a de contatos do whatsapp, mas não certamente se for a lista de um branco de classe média.
Há casos grotescos que ilustram o funcionamento discriminatório do aparato repressivo do Estado que Semer apurou cientificamente. Em Mococa, interior de São Paulo, a polícia encontrou 45 pinos de cocaína em uma calça masculina no banheiro de uma casa. Duas mulheres que habitavam a casa foram condenadas por tráfico. Essas coisas nunca acontecem no Leblon ou nos Jardins.
Ao limitar a descriminalização à maconha, preservando o cerne da proibição às drogas, a decisão do STF colocou vinho novo em odre velho. A irracionalidade em si da repressão às drogas é insuperável. A história da proibição a mostra fundada em racismo, em discriminação às classes populares, na criminalização delas, no controle da massa de excluídos e em interesses econômicos das indústrias farmacêuticas.
John Ehrlichman, conselheiro de Richard Nixon, em uma entrevista concedida em 1994 sobre a guerra às drogas, dizia: “quer saber realmente do que se tratava? A campanha de Nixon em 1968 e a Casa Branca, depois, tinham dois inimigos: a esquerda contrária à guerra (do Vietnam) e os negros (…) Sabíamos que não podíamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao fazer com que as pessoas associassem aos hippies a maconha e aos negros a heroína, e penalizar severamente ambas as substâncias, podíamos pegar as duas comunidades. Podíamos deter seus líderes, realizar incursões em suas casas, interromper suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim”.
Entre outras coisas é disto que se trata.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.