Uma morte, muitas perguntas e uma testemunha incomum
frame de "Anatomia de uma queda"
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* Esse texto contém spoilers
uma família vive numa região remota de uma pequena cidade francesa montanhosa. Essa família é composta por uma mulher, um homem, uma criança e um cachorro. O menino, filho do casal, tem uma deficiência visual grave, fruto de um acidente, e o cachorro, além de seu amigo-companheiro, também é um cão-guia. Um cão que enxerga e traduz para o menino os perigos e as alegrias do mundo à sua volta. Com seus sentidos privilegiados de cachorro, é capaz de ver e antever mais do que uma pessoa com a visão perfeita conseguiria.
Um dia, o menino sai para caminhar com o cachorro e, quando volta para casa, ambos testemunham uma tragédia: o pai está caído sobre a neve, sangue em volta da cabeça. O corpo morto se estira no chão. O cachorro fareja e chora, o menino grita, a mãe sai de casa às pressas, atordoada. O pai teria caído da janela do sótão, enquanto trabalhava na reforma do espaço? O pai teria se jogado de lá? Ou – uma hipótese que vai ganhando cada vez mais contornos – o pai teria sido jogado pela mãe?
Essas dúvidas estão na premissa de Anatomia de uma queda (2023), filme premiado de Justine Triet, que continua rendendo discussões muito interessantes. As perguntas acima não são respondidas e, assim como o filho do casal, nós, como espectadores, temos que fazer uma escolha e decidir em qual versão queremos acreditar. O filme nos dá elementos para considerar ao menos três caminhos: homicídio, suicídio, acidente. Conforme se desenrola, no entanto, o embate parece ser reduzido a apenas duas possibilidades: ou o pai se matou ou o pai foi morto.
Um suspense policial e psicológico, um retrato dramático de um casamento em crise, um filme de tribunal: tudo isso é insuficiente para classificar o que Anatomia de uma queda nos apresenta. É uma dessas raras obras que se interessa mais por perguntas do que por respostas. Temos também um tema que perpassa cada cena: as construções narrativas que criamos para sustentar uma ou outra posição, e a estrutura de ficção sobre as quais essas narrativas se apoiam, mesmo num tribunal, quando se propõe a encontrar “a verdade”. Tanto a esposa quanto o marido são escritores de literatura, e seus projetos literários também estão no coração do filme, adicionando mais complexidade a essa discussão.
Mas há um elemento que causou imensa comoção nos espectadores e que poucas vezes é levado a sério nas análises que despontam sobre Anatomia de uma queda: a presença de Snoopy, interpretado pelo cachorro-ator Messi, que se tornou uma sensação pelo seu desempenho impressionante no filme. Claro, ele tem um papel fundamental para o veredicto — quer seja o do filho, quer seja o do tribunal. E nesse sentido, é mesmo impossível não o mencionar. Mas Snoopy tem um papel bem mais estruturante do que tem sido notado: é ele quem abre e fecha o filme, é ele quem o costura.
Na primeira cena, antes mesmo que qualquer personagem humano entre no campo da câmera, vemos Snoopy descendo as escadas da casa, ouvimos o barulho de suas patas contra o piso acompanhando uma bola amarela atrás da qual ele vem obstinado. Pouco depois, ele volta a aparecer, agora com o menino, Daniel, enquanto ele enxuga o cachorro depois de lhe dar um banho. O pai está trabalhando no sótão, música alta, enquanto a mãe tenta dar uma entrevista sobre o seu trabalho como escritora, mas não consegue prosseguir por conta do barulho perturbador. Interrompe, então, a conversa, e o menino sai para caminhar com Snoopy. Ao retornar, encontra o pai morto.
Quando a mãe é acusada e levada a julgamento, o menino se torna uma testemunha importante, já que foi ele quem encontrou o corpo do pai. Mas, mais do que uma testemunha de sua morte, Daniel é testemunha do casamento dos pais, dos conflitos que haviam entre eles, e, conforme o filme se desenrola, o menino se vê numa situação impossível: tomar a decisão de contribuir para acusar ou para defender a mãe, enquanto tenta compreender o que pode ter acontecido. É através de um “experimento” com o cachorro, no entanto, que Daniel faz a sua escolha.
Mas aqui o que me interessa investigar é a centralidade de Snoopy de uma outra forma: o cachorro como a verdadeira testemunha não apenas de como o pai morreu, mas sobretudo de como aquela família viveu. Se os cães já têm sentidos que nós, seres humanos, não alcançamos, imagine um cachorro que funciona como guia de um menino praticamente cego. Podemos presumir que Snoopy foi treinado para enxergar pelos dois e para identificar nos ambientes qualquer ameaça de perigo real ou potencial.
Se a morte do marido foi acidental ou não, afinal não sabemos. Mas o tribunal conclui que a esposa não é a culpada. E o filme nos dá elementos para fazer nossas interpretações. Embora goste muito da ideia de acomodar o não saber, gostaria de pensar em uma possibilidade específica que Anatomia de uma queda nos oferece como chave de leitura: a de que o cachorro é uma parte privilegiada dessa família interespécies e a de que ele talvez seja capaz de saber coisas que estão indisponíveis para todas as pessoas — personagens e espectadores do filme. Há, inclusive, uma cena logo no início em que a câmera acompanha a perspectiva do cachorro enquanto ele caminha entre os policiais e adentra a casa em que viviam, parando em frente a um porta-retrato que guarda uma foto do homem morto.
No livro Animalidades (2023), a pesquisadora Maria Esther Maciel dedica três capítulos à representação dos cachorros na literatura. Em um deles, abre com duas epígrafes que tomo emprestadas aqui:
“Onde nós não alcançamos/ dentro de nós/ o cão ia”, Manuel António Pina.
“mas quando toco a ponta/ do meu nariz no seu/ e os nossos olhares se entrançam/ não há ciência/ talvez não haja nem mesmo história/ o que vê a mulher/ no cachorro e o que vê / na mulher o cachorro”, Adriana Lisboa.
Nesse mesmo livro, Maria Esther Maciel observa que alguns escritores “privilegiam os animais como sujeitos, seres dotados de inteligência, sensibilidade e saberes sobre o mundo”. Na última cena, em uma bonita rima com a primeira, Snoopy volta a aparecer, o que não parece fortuito. Nela, a mulher está de volta à casa depois da sentença, aliviada por ter sido inocentada, inclusive pelo próprio filho, mas também parece entristecida. Não sabemos como o marido morreu, mas ele está morto, e ela tem consciência de que a realidade como conhecia jamais existirá novamente.
Num filme em que a linguagem também é um elemento fundamental — temos o alemão, língua materna da mulher, o francês, língua materna do marido, e na qual a mulher é julgada, e o inglês, língua em que os dois se comunicam, não sem perdas, não sem ressentimento, mas como um lugar no meio em que eles podem se encontrar com algum equilíbrio —, também há uma linguagem não-verbal que pouco se leva em consideração: a linguagem do cachorro.
Quando a mulher está deitada, a casa escura, o filho dormindo, no fim de um processo judicial desgastante, no meio de um processo psíquico doloroso, ela parece absolutamente solitária e desamparada, ainda que esteja a salvo de uma condenação. É então que Snoopy, pela primeira vez em todo filme, se junta espontaneamente a ela. Ele sobe e se deita ao seu lado, e então os dois se aninham. Talvez essa cena indique que o cachorro reconheça o sofrimento da mulher, e se não propriamente a absolvendo-a, já que ele sequer julga, ele parece compreendê-la, acolhê-la e confortá-la, e essa é a última imagem que temos desse filme tão triste quanto bonito. Um momento de encontro, entre tantos desencontros, e de uma ternura singela.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.
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