A riqueza de Elsa Morante
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“Cara senhora, sabe que és rica? E que distribuíste essa riqueza de mãos cheias? Eu espero ser beneficiada novamente no futuro.” A frase, dirigida a Elsa Morante (1912-1985), uma das mais importantes escritoras italianas da segunda metade do século 20, é uma das tantas manifestações de leitores comuns depois de terem lido A História, romance de grande clamor publicado na Itália em 1974. A autora da carta se chama Mariuccia, uma viúva de 65 anos mãe de três filhos e avó de seis.
Na coletânea epistolar L’Amata (“A amada”, Einaudi, 2012), que reúne a correspondência de Elsa Morante, os remetentes são dos mais variados: operários, donas de casa, jovens estudantes, mas também amigos da escritora, intelectuais, jornalistas e críticos. Depois de sua morte em 1985, cerca de 5000 cartas, postais e correspondências variadas foram encontradas entre seus pertences. Sua popularidade era indiscutível.
Elsa Morante faz parte de uma leva de autoras mulheres que estão sendo redescobertas e celebradas nesta fase atual interessante que aponta um olhar atencioso para as questões femininas, e que se desdobra em variados campos. Um dos mais empolgantes, a literatura. Seu nome foi associado a outro fenômeno, mais contemporâneo, com quem faz até rima: Elena Ferrante. A autora da celebrada tetralogia napolitana afirmou em algumas ocasiões sua admiração por Morante, e é frequente reconhecer as similaridades entre as duas. A começar por temáticas que lhes são caras: a intrincada relação entre genitores e filhos, o abandono dos afetos, e a densidade das questões femininas. Ferrante e Morante conseguem explorar em seus personagens uma Itália genuína sem cair na armadilha de reforçar os estereótipos, além de relacionar a algumas de suas obras o contexto social e histórico do país.
Na Itália, o nome de Morante voltou ao foco recentemente quando foi ao ar, em janeiro de 2024, a adaptação televisiva de sua obra mais discutida, A História. O anúncio feito pela RAI (Radio Audizioni Italiane) da produção de uma série inspirada no livro foi recebido com grande expectativa, já que a maior rede de televisão do país tem se esmerado na criação de produtos audiovisuais cada vez mais refinados. Um dos exemplos é a própria série My brilliant friend, inspirada na tetralogia de Ferrante. O sucesso da série, com direção de Francesca Archiburgi, colocou o livro de Morante novamente na lista dos mais vendidos no país.
No Brasil, a obra de Elsa Morante ainda é pouco conhecida, mas a projeção que a autora teve nos últimos anos com o crescimento do interesse pela literatura italiana feminina dá seus sinais. A História foi publicada no país pela editora Record, em 1978, com tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Hoje é difícil encontrar um exemplar nos sebos. Em 2019, a Carambaia publicou uma edição de A ilha de Arturo com tradução de Roberta Barni. A editora Âyiné trouxe para o Brasil, em 2017 a versão ensaísta de Morante com o livro Pró ou contra a bomba atômica traduzido por Davi Pessoa Carneiro.
Um romance de protesto
A História se passa no período da Segunda Guerra Mundial em Roma e conta as vicissitudes de Ida Ramundo. Nas primeiras páginas do livro, acompanhamos a protagonista viúva que vive com seu filho adolescente Nino. Um dia, no ano de 1941, enquanto volta para a casa com a sacola de compras, Ida é estuprada por um soldado alemão de passagem pelo bairro de San Lorenzo. Desse episódio nasce Giuseppe, a quem posteriormente ela chamará Useppe. Juntos, eles irão enfrentar os anos mais terríveis do século passado. Entre bombardeios, a perseguição nazifascista, a carestia e o profundo mal-estar que a guerra imprimiu em suas almas.
O título A História, com H maiúsculo, é proposital porque a história de Ida e dos outros personagens que povoam o livro se aproxima da história do conflito. Elsa escolhe abrir os capítulos com uma espécie de crônica sobre os eventos históricos que aconteceram durante e após os anos de guerra. Muitas vezes especificando datas, ela cita o cruel esvaziamento do gueto judeu de Roma pelos soldados alemães em 1943; em 1945, a destruição das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki; em 1946, a independência da Índia e a divisão do território com o Paquistão. Em toda a cronologia, a escritora aponta os massacres e o número de mortos nos eventos. Parte da documentação histórica que Morante utiliza é citada nas edições do livro, o que reforça sua intenção de amarrar as vicissitudes dos personagens aos horrores da guerra e relembrar que se trata de um acontecimento real.
O livro foi publicado em 1974 e tornou-se um caso editorial emblemático. À época, Elsa pediu que sua editora, a Einaudi, fizesse uma edição econômica pois queria que ele chegasse também a quem não dispunha de muitos recursos para comprá-lo. Algo parecido ela já havia feito em 1968, quando publicou pela mesma editora o livro Il mondo salvato dai ragazzini (“o mundo salvo pelos garotos” em tradução livre). Elsa enviava gratuitamente cópias do livro para meninos pobres, pois acreditava que a mensagem de esperança do manifesto político presente no livro deveria chegar a toda juventude. A editora articulou uma campanha de promoção jamais vista, com direito a anúncio do livro nos principais jornais. Na estratégia editorial, a Einaudi divulgava que o livro sairia com uma tiragem inicial de 100 mil cópias, algo raro, demonstrando uma aposta sem precedentes na qualidade do romance.
A potência de A História já se via pelo invólucro. A capa era estampada com uma fotografia de Robert Capa de um homem morto nos escombros de um bombardeio com o rosto virado para o chão e a frase “um escândalo que dura 10 mil anos”. Passados os primeiros seis meses, o romance chegava à incrível marca de 600 mil cópias vendidas. O crítico literário Cesare Garboli (1928-2004), no prefácio da edição mais recente do livro, associa esse sucesso, entre outros motivos, ao momento histórico que a Itália vivia no início dos anos 1970. Ele pontua que a palavra revolução estava na ordem do dia, e que as ideias da esquerda eram fortes apesar de politicamente não vitoriosas. O efeito que um livro de protesto como o de Morante teve em tal atmosfera foi extremo; para o bem e para o mal.
O livro que dividiu a Itália
A História foi um sucesso editorial, político e cultural. A ideia de Morante de usar uma linguagem simples, lançando mão de numerosos personagens que sofrem, narrando com paixão cenas de violência e tristeza, e exaltando a ternura de uma criança filha da guerra trouxe a literatura para o centro do debate. Naquele verão de 1974, era recorrente ver os italianos durante as férias na praia, no campo, na montanha empunhando o pesado livro de Morante e conversando sobre o romance nas ruas em calorosos debates. O fato refletia exatamente o que Morante propunha com seu livro: evidenciar as massas populares, que eram os protagonistas de sua (H)istória.
A indiferença, um dos temas centrais do livro, foi também o recurso que Elsa usou em relação à obediência ao sistema da teoria literária. Para a epígrafe ela escolheu um verso do poeta peruano César Vallejo “por el analfabeto a quien escribo” (“para o analfabeto a quem escrevo” em tradução livre), assumindo sem ressalvas o papel de escritora de romances populares, cuja mensagem pudesse chegar às massas. Para boa parte da crítica da época foi imperdoável.
Elsa Morante era já uma figura consolidada no mundo literário quando A História foi publicado. Seu primeiro romance, Menzogna e sortilegio (Mentira e sortilégio, trad. livre), de 1948, convenceu a crítica de que ela era uma autora autônoma, e não apenas a esposa de Alberto Moravia (1907-1990), escritor de muito destaque à época. A partir de então, Elsa colecionou elogios e reconhecimento, coroados em 1957 com o recebimento do Prêmio Strega, maior condecoração literária na Itália, com o seu A ilha de Arturo. Morante foi a primeira mulher a ganhar o prêmio. Nem assim, ela escapou de duros julgamentos, quando publicou A História 17 anos depois.
As primeiras críticas sobre o livro elogiavam a capacidade de Elsa de adentrar os horrores da guerra do ponto de vista de quem a sofreu: os personagens comuns, trabalhadores que tiveram suas casas devastadas, judeus perseguidos, adultos e crianças espremidos em refúgios antiaéreos, Ida Ramundo, a protagonista, brigando por poucas gramas de farinha ou roubando ovos pelas grades de uma casa abastada. A História emocionava, fazia derramar lágrimas, como declarou a escritora Natalia Ginzburg, uma das defensoras do romance. Mas para outros, como pontua Garboli no prefácio do livro, “Morante foi acusada de especular em cima do sofrimento, de vender desespero, de propagar o pessimismo, de colocar no mercado um romance criticável do ponto de vista marxista-proletário”. Mais do que isso, Morante ousou honrar o romance popular e pecou por buscar ser politicamente didática.
As críticas negativas vinham majoritariamente dos intelectuais que pareciam não aceitar que o público geral tomasse para si o ofício da crítica, levando o debate sobre o livro para a mesa do bar ou ao salão de cabeleireiro. Pasolini (1922-1975), amigo a quem Elsa era muito afeiçoada, foi um deles. Pasolini achava os personagens incoerentes, falsos, arbitrários e acusou o romance de ser ambicioso e imperfeito. Para ele, a ideologia de Morante cabia em um livro como Il mondo salvato dai ragazzini, que tinha uma estrutura para muitos indecifrável. Em um livro popular como A História, essa ideologia tornava-se vulgar e Morante perdia completamente sua credibilidade. Depois disso, Elsa e Paolini nunca mais se viram. Um ano mais tarde, ele morreria tragicamente em Ostia, nos arredores de Roma.
Angela Borghesi, estudiosa de literatura e professora na Universidade Bicocca, em Milão, reuniu em uma publicação lançada em 2019 (L’anno della Storia, 1974-1975 – O ano da história, 1975-1975, trad. livre, editora Quodlibet) a antologia da crítica sobre A História, com a seleção de vários artigos sobre o livro, que estamparam os quotidianos italianos entre 1974 e 1975. Borghesi pondera que a hostilidade dirigida a Morante vinha de uma leitura superficial e carregada de preconceito porque Elsa era mulher, porque seu livro era comovente, mas principalmente porque foi um grande sucesso comercial, o que era, na ideia dos críticos, incompatível com a qualidade literária.
Neste ponto, as estradas de Elsa Morante e Elena Ferrante se cruzam. Assim como a escritora que a inspirou, Ferrante por vezes foi tratada com certo desdém pela crítica italiana. A escritora estadunidense Andrea Lee, em um recente texto para a Air Mail, expôs sua perplexidade quanto ao comportamento de alguns leitores e da mídia italiana em relação a Ferrante. Lee conta que apesar de a autora ter sido nomeada para o Prêmio Strega e ser elogiada por colegas e acadêmicos, seu sucesso, principalmente no exterior, desencadeou um tratamento hostil por parte da imprensa, que a criticou por ser muito sentimental ou muito dura, muito feminista ou não suficientemente feminista, por mostrar uma Nápoles sensacionalista ou brutalmente realista. Para além das questões de gênero e da crítica sobre a popularidade e a força comercial do romance, Andrea Lee faz uma ponderação que se aplica também ao caso de Morante e sua História: “Para os italianos, esse tipo de narrativa ambientada no quadro íntimo de sua própria história recente é no mínimo revolucionária e, por vezes, insuportável.”
Visitei algumas vezes o bairro onde se acredita passar a história de Lila e Lenu, as protagonistas da tetralogia de Elena Ferrante. Conversei com alguns moradores enquanto fazia pesquisas para o meu livro Para além das margens: a Itália de Elena Ferrante, que será lançado em julho pela editora Bazar do Tempo. Apesar de reconhecerem o sucesso da autora, não existe uma celebração em torno de sua obra. Muitos se incomodam com o excesso de violência com o qual ela descreve o lugar e as críticas que dirige à cidade de Nápoles. A proposta de olhar para as próprias feridas não é fácil de aceitar.
Elsa Morante nunca respondeu aos ataques da crítica, tampouco participou dos debates literários acerca de seu livro. Manteve-se fiel a si. No entanto, ela se aproximou cada vez mais de seus leitores. No livro de cartas é possível perceber sua ternura respondendo a uma jovem leitora de 15 anos chamada Stefania, que havia se emocionado lendo A História. Em sua correspondência, a menina se diz uma grande admiradora, mesmo sabendo que sua opinião não conta quanto a dos críticos, e pede que Elsa lhe responda “tenho certeza que me responderá, porque a senhora é grande, estupenda e não se esquece do povo que a ama”. Um mês depois, na volta da escola, Stefania chegaria em casa e encontraria uma carta assinada por Elsa Morante. Ela era sim, imensa.
Isabela Discacciati é jornalista especializada em cultura pela Universidade Ca’ Foscari de Veneza, região onde vive atualmente. Publicou o Guia de Nápoles: rotas Elena Ferrante (Intrínseca, 2020), com ilustrações de Silvia Benedet. Em 2024 publicou pela Bazar do Tempo, Para além das margens: a Itália de Elena Ferrante.