Cannes 2024, dia 2: “Megalópolis” e “Furiosa”
divulgação
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As telas da Croisette apresentaram nesta quinta, dia 16, os dois dos filmes mais esperados do Festival de Cannes 2024. E que, a bem da verdade, também são dois dos longas mais aguardados do ano como um todo. Portanto, o dia foi marcado por uma atmosfera de especial excitação no evento francês.
Um deles foi exibido fora de competição: Furiosa – Uma Saga Mad Max, nova empreitada do australiano George Miller na bem-sucedida franquia criada por ele mesmo, na década de 1980. O longa se passa cerca de 20 anos antes de Mad Max – Estrada da Fúria, o mais recente da série, lançado também em Cannes, em 2015.
Desta vez, sai Charlize Theron e entra Anya Taylor-Joy no papel da destemida Furiosa, a guerreira de um futuro caótico, que luta incansavelmente com seu braço protético por sua sobrevivência diante de inimigos temíveis e das mais apavorantes adversidades. O novo filme mostra a infância da personagem, apresentando como foi levada à força do local onde foi criada, um oásis com árvores, água potável e mulheres poderosas no meio de um deserto hostil e repleto de homens bárbaros e mal-intencionados, em algum lugar da Austrália.
Para quem gosta da série, não tem muito erro: o longa conta com a competência técnica de sempre de Miller e o envolvente (ainda que repugnante) universo criado por ele, sobre um mundo praticamente inabitável, que talvez seja o nosso muito em breve, se as coisas continuarem a seguir como têm seguido. Mas Furiosa demora tempo demais com a personagem-título ainda criança, e por mais que a atriz-mirim Alyla Browne seja eficiente, falta ao filme certa energia de uma guerreira de fato combativa em sua primeira parte.
Anya Taylor-Joy só aparece na metade do longa, mas consegue a proeza de levantar sozinha um filme que começava a se rastejar enquanto ela não surgia. Seus olhos enormes são puro ressentimento, e ainda que fisicamente ela seja muito mais franzina que a formidável Charlize Theron (e a cor dos olhos da personagem desta vez tenha outra cor: são negros, e não azuis), ela imprime ao longa uma presença tão impactante quanto a da atriz que a antecedeu no papel. A priori, parecia um erro de casting, mas o filme é a prova vibrante de que não foi o caso.
Os efeitos especiais do longa são computadorizados em tal nível que, a não ser pelos atores, parece que absolutamente nada do que se vê em cena de fato estava ali. Visualmente, o filme sugere um videogame de última geração, e embora a estranheza dos movimentos de personagens e veículos em cena combine com o projeto de atordoar o espectador, ela traz igualmente consigo uma certa impessoalidade. Sim, os filmes de ação operam sempre em uma chave de evidente artificialidade, mas em Furiosa Miller utiliza os efeitos digitais com tamanho desprendimento (e mesmo desfaçatez) que o longa resulta por vezes desalmado, oco, apesar da impressionante parafernália digital na superfície. Talvez seja o filme menos interessante de toda a franquia, mas, ainda assim, foi muito bem recebido em Cannes.
Caso diferente do outro longa badalado desta quinta, Megalópolis, que marca o retorno de Francis Ford Coppola à competição em Cannes, 50 anos depois de ganhar a Palma de Ouro pelo excelente A Conversação (1974). O estadunidense ainda ganharia uma outra Palma dourada em 1979, por Apocalipse Now, para em seguida iniciar uma fase menos bem-sucedida em sua carreira.
Megalópolis é um projeto que Coppola já possuía na década de 1980, mas que nunca conseguiu os meios (ou a inspiração) para completar. Só o fez agora, após uma pausa de 13 anos sem lançar um filme (o último foi o lamentável Virgínia, de 2011), o que só aumentou a expectativa diante desse longa quase jamais realizado.
Infelizmente, o resultado não causou boa impressão – na sessão vespertina para a imprensa, houve até vaias, apesar de alguns aplausos não muito efusivos. O que é compreensível: o longa se estende por duas horas e meia acerca de uma série de analogias que variam entre a perspicácia, mas sobretudo a rasura e a ingenuidade, entre a Roma Antiga e os Estados Unidos modernos. Segundo Coppola, a ascensão e queda de ambos se dá diante da cobiça de alguns poucos homens poderosos com ambição desmesurada.
Sim, não deixa de ser verdade, mas não há robustez suficiente ou sofisticação no desenrolar dessa ideia-base. O foco é no embate entre um rapaz de pensamento mais progressista, vivido por Adam Driver, e um homem mais conservador, interpretado pelo sempre subaproveitado (mas ótimo ator) Giancarlo Esposito – com espaço ainda para uma figura imprecisa, que por fim se revela midiática e de discurso eleitoreiro, certamente de inspiração trumpista, vivido por Shia LaBeouf.
Na primeira cena em que mostra a decadente “Nova Roma” – que é como Nova York se chama no filme –, o cineasta enfoca uma festa com música eletrônica, em que mulheres se beijam licenciosamente, enquanto se drogam no meio da pista. Talvez essa seja a visão-súmula da metrópole moderna em ruínas que Coppola possui – uma variante repaginada da que Federico Fellini tinha sobre a Roma verdadeira dos anos 1950, imortalizada em seu A Doce Vida (1960), que é de certo modo evocada aqui, embora em uma vertente decepcionantemente mais moralista.
O grande problema quando um artista tem um projeto por muito tempo na cabeça sem conseguir materializá-lo é justamente a falta de distanciamento que, com o tempo, passa a ter do material. Ao que parece, o filme que Coppola tinha em mente ficou por tanto tempo preso em seu crânio que, na hora de sair dali, foi para fora sem conseguir se expandir; é quase que um protofilme, fechado em si e incapaz de se comunicar com o que está ao redor. Escora-se em temas e analogias relativamente simples, mas a feitura é de um rebuscamento injustificável.
E menos justificável ainda é a presença de atores enormes, como Laurence Fishburne e Dustin Hoffman, em papeis em que têm quase nenhuma relevância (Fishburne, que é o motorista do personagem de Adam Driver, é uma espécie de narrador da história, mas isso se revela uma ideia completamente estéril).
Megalópolis não é de modo algum um filme detestável, mas é em vários momentos embaraçoso, e os fãs do cineasta que tinham altas expectativas e que não conseguem ter distanciamento de seu ídolo precisarão repetir o que fizeram quando ele lançou outro grande fracasso de sua carreira, O Fundo do Coração (1982): alçá-lo imediatamente à condição de cult. Porque, em qualquer outra esfera, Megalópolis não tem a menor chance de êxito e sobrevivência. É duro dizer, mas é a verdade.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema