La Denser – erotismo e sofisticação na literatura feminina brasileira

La Denser – erotismo e sofisticação na literatura feminina brasileira
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Conheci a literatura de Márcia Denser nos anos 80, quando eu ainda morava em Londrina, na extinta revista Around, que depois passou a se chamar AZ. Se não me engano, o editor na época era o Antônio Bivar e ele publicava vários escritores bacanas e foi numa dessas que eu conheci a Márcia. Achei o conto muito foda e pela foto que publicaram dela, saquei que se tratava de uma mina muito estilosa, só depois é que fiquei sabendo que ela era conhecida como “musa dark da literatura brasileira” e a escritora preferida de Paulo Francis. Fui atrás dos livros dela. O primeiro que li foi Diana Caçadora de 86, com as histórias de seu alter-ego Diana Marini, depois garimpei nos sebos e consegui O Animal dos Motéis e Tango Fantasma. Quando me mudei para São Paulo a conheci pessoalmente e ficamos amigos. Quando ela trabalhava no CCSP como pesquisadora responsável pela área de literatura brasileira contemporânea e eu ainda conseguia me apresentar lá, sempre nos encontrávamos. Lembro que ela organizou um debate sobre literatura e me convidou para participar da mesa junto com o amigo em comum Reinaldo Moraes. Infelizmente ela publicou pouco nos últimos anos. O último livro dela que eu li é de 2002, o Toda Prosa. Em 2008 saiu o Toda Prosa II – Obra Escolhida com contracapa assinada por Marcelo Mirisola que era grande amigo dela, e outro amigo em comum. E em 2016, saiu o DesEstórias que eu ainda não li. Bebemos várias no antigo Teatro Satyros 2 na Praça Roosevelt, quando era bacana beber lá. Acho que Márcia era uma escritora de um tempo que era bacana escrever, ler, ser lido, conversar a respeito de literatura. E era isso que fazíamos sempre que nos encontrávamos e enquanto a bebida não acabava. Márcia escrevia literatura erótica de qualidade em um tempo que mulher não fazia isso. Tá, você pode até dizer que Adelaide Carraro já fazia, mas estaremos falando de duas coisas diferentes. Eu insisto que Márcia foi pioneira e chutou a porta para que outras escritoras entrassem e conquistassem seus lugares no até então clubinho estritamente masculino. Márcia publicou o seu primeiro livro em 1976 (Tango Fantasma), com apenas 23 anos e em plena ditadura. Um livro de literatura erótica feminina muito antes por exemplo de A Obscena Senhora D (1982), de Hilda Hilst. O livro tem contos como “Um Pingo de Sensibilidade” onde uma jovem secretária comprometida com um namorado que a trata com frieza, aceita fazer um programa com um velho senador a fim de conseguir um cargo público. Em “O Homem de Cascavel”, a personagem principal é Madalena que tem um caso com um médico que a trata mal e de maneira degradante escancarando a baixa autoestima da protagonista. Nesses dois contos apesar da alta carga erótica, a personagem feminina ainda se mostra submissa ao poder masculino. O feminismo ainda engatinhava no Brasil, e Márcia ainda parecia apenas dar sinais de que tentava se empoderar. Afinal ela mesma confessou que foi oprimida por mulheres em primeira instância “na escola pelas colegas e em casa pela mãe”. Em 1981, Márcia publicou O Animal dos Motéis onde a personagem apesar de ainda se mostrar submissa ao desejo masculino, consegue dar um rolê na frágil supremacia masculina às custas do intelecto da personagem que atropela o descaso masculino citando Hemingway e Cortázar para o amante desinteressado e avesso a qualquer tipo de erudição cultural. É de 86 o livro Diana Caçadora onde ela nos apresenta o seu alter-ego mais célebre (Diana Marini). No conto “Hell´s Angels” (incluído na coletânea Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi), a personagem vivendo a crise dos 30 anos se envolve com um jovem motociclista de 17 anos (Rubi) que também despreza o intelecto da mulher interessado nela apenas como objeto de desejo sexual. A escritora cita Nelson Rodrigues: “Toda mulher devia amar um menino de 17 anos”. No conto “Tigresa” que sugere uma relação homossexual que não se concretiza, a escritora se vinga do sentimento de opressão que viveu primeiro com as mulheres (as colegas de escola e a mãe) e depois pelos homens de seus contos, desprezando e descartando o desejo que uma mulher (Lila) tem por ela. Em todos esses contos, o erotismo está presente como principal elemento que exerce fascínio e excitação. Márcia dizia que escrevia “sob emoção intensa, para salvar minha vida, como se exorcizando um demônio, um íncubo, um súcubo” e se declarava uma “escritora cult de linhagem clariceana, cortazariana, faulkneriana”. Márcia nos deixou no dia 5 de abril. Ela estava doente já há algum tempo, desamparada, vivendo de aposentadoria e não conseguindo pagar os custos de seu tratamento. Ela sofria de osteoporose tomando Prolia, uma injeção para reconstituir os ossos danificados pela doença. Márcia saiu da linha de frente para um anonimato cruel. Não que o anonimato seja algo cruel, mas para um escritor que precisa vender os seus livros, acaba sendo. E as novas gerações não conhecem Márcia Denser. Essa escritora que ministrava cursos de criação literária e que proibia o uso da palavra “oficina” porque afinal “literatura não é carro, caralho”. Que a conheçam urgentemente.

Mário Bortolotto é escritor, dramaturgo, diretor do Grupo de Teatro Cemitério de Automóveis, ator, vocalista e compositor das bandas Saco de Ratos, Tempo Instável e Roberto Embriagado


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