Marx e o idioma da mercadoria

Marx e o idioma da mercadoria
retrato de Karl Marx

 

São infindáveis as análises que giram em torno do item “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, parte do primeiro capítulo d’O Capital. O parágrafo que inaugura o item, aliás, talvez seja um dos trechos mais citados e comentados na história dos pensamentos moderno e contemporâneo:

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa.

Essa coisa trivial mostra sua faceta complexa no ponto exato em que quase perde seu caráter material para adquirir elementos metafísicos. Nesse lugar aparentemente vazio de materialidade, a mercadoria ganha poderes e dimensões sobrenaturais. Seu caráter místico está situado em sua forma, que concentra uma inversão: as caraterísticas sociais específicas do trabalho descolam-se dos homens, que desempenham as atividades laborais, e migram para os produtos resultantes do trabalho, que passam, então, a ter configurações sociais. É assim que o mistério da forma mercadoria causa um impacto comparável ao encantamento de Pigmaleão por sua obra Galateia – enfeitiçados pelos produtos de seus trabalhos assim que esses entram no registro do valor de troca, os homens se esquecem de que eles resultam do processo de trabalho para conceder-lhes autonomia e poder. Daí Marx afirmar que “a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam.”.

Essa faceta fantasmagórica que permeia a relação humana com a mercadoria e das coisas entre si só encontra respaldo em um modelo de pensamento religioso análogo ao do cristianismo. É quase um efeito mágico observar como à natureza física do produto sobrepõe-se a forma mercadoria, moldada pelas linhas que tecem as relações sociais entre os humanos. Se seguirmos os passos desmistificadores do cristianismo, dados por Feuerbach, talvez fique mais evidente os caminhos percorridos por Marx na desmistificação da religião capitalista. Embora o teor de fábula iluminista seja nítido para os olhos contemporâneos depositados nos escritos de Feuerbach, não é possível desviar dessa importante referência para pensar o caráter fetichista da mercadoria na obra marxista. Vejamos uma breve passagem que demonstra como o raciocínio empregado na análise do cristianismo é quase o mesmo que Marx usa para demonstrar o caráter místico da mercadoria. Diz Feuerbach:

[…] a religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si mesmo. Por isso em toda parte a religião precede à filosofia, tanto na história da humanidade quanto na história do indivíduo. O homem transporta primeiramente a essência para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. A sua própria essência é para ele objeto primeiramente como uma outra essência. A religião é a essência infantil da humanidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano, fora de si – enquanto criança é o homem objeto para si como um outro homem.

“A religião”, diz ainda Feuerbach, “é a cisão do homem consigo mesmo”. Nela, “o homem objetiva a sua própria essência concreta”, isto é, a “cisão entre Deus e homem, com a qual se inicia a religião, é uma cisão do homem com sua própria essência”. Se transportarmos afirmações desse tipo, encontradas em A essência do cristianismo, para algumas linhas d’O capital não será difícil reconhecer a origem de alguns insights marxistas. Como vimos, a faceta religiosa da mercadoria expressa a inversão entre humanos e coisas.

São essas inversões, aliás, que serviram para importantes análises frankfurtianas, como o enigmático fragmento O capitalismo como religião, de Walter Benjamin. Ali, lê-se: “o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez até a mais extremada que já existiu”. Nele “todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto [da mercadoria]; […] o capitalismo não possui nenhuma dogmática, nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o utilitarismo obtém sua coloração religiosa”. Nesse fragmento, interpretado por Giorgio Agamben, fica ainda mais evidente como a estrutura que sustenta o capitalismo é destituída de consistência material, sendo a nossa crença ou fé depositada justamente na ilusão de que habitamos reinos repletos de objetos e modelos necessários e úteis pelos quais contraímos dívidas [Schuld], assumimos culpas [Schuld] e pagamos penitências, sem saber quem exatamente está por trás de tal domínio.

Mas é o próprio termo fetichismo aquele que melhor expressa o lado arcaico que molda a modernidade burguesa. Antes de analisá-lo, contudo, seria interessante evocar a aproximação entre Marx e Freud, feita por alguns autores, como Michel Foucault ou Paul Ricoeur. Tidos por estes como mestres da suspeita, ambos são considerados autores hábeis em mostrar que “a linguagem não diz exatamente o que diz”. Aliás, ao desconfiarem de que “o sentido que se apreende e que se manifesta de forma imediata” teria “um significado menor”, protegido e encerrado por pensamentos elevados, são conduzidos a outros significados mais importantes justamente por estarem alocados naquilo “que está por baixo”. Como Freud, que observou uma inclinação masturbatória inerente aos elevados pensamentos metafísicos, ou o gozo que penetra a castidade ou a devoção religiosa, Marx mostra como a lógica que orienta a modernidade burguesa é sustentada por pilares análogos àquela dos povos considerados primitivos pelos olhos iluministas.

É nesse sentido que vale a pena retomar aqui Do culto dos deuses fetiches ou Paralelo da antiga religião do Egito com a religião atual da Nigritia no qual Charles de Brosses buscava, esclarece Vladimir Safatle em Fetichismo: colonizar o outro, “criar um paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao mesmo tempo histórico (no passado) e geográfico (no presente) e determinar as coordenadas histórico-geográficas do pensamento primitivo através da identificação de uma forma de encantamento cuja ilustração perfeita seria o culto aos ditos deuses do fetiche.”. Nesse contexto, o fetiche surgia como “divinização de animais e de fenômenos irregulares da natureza” ou “culto de objetos inanimados” realizado por tribos da Guiné e da África Ocidental.

Mas, para obter maior precisão, o salto mágico que depõe sobre os produtos de trabalhos privados o invólucro da mercadoria talvez exija o resgate de “A forma de valor ou o valor de troca” item que compõe O capital. Antes de citá-lo, vale lembrar que a detalhada análise anterior a tal passagem já havia desvendado a medida de grandeza das mercadorias, sendo o trabalho e seu valor depositado nestas a unidade capaz de tornar coisas, materialmente diferentes, equiparáveis no mercado. É numa extensiva comparação entre casaco e linha que Marx mostra uma identidade inerente à diferença, ou seja, o valor de uso do casaco como diferente do da linha, mas um casaco correspondendo ao valor de vinte varas de linho (o dobro da quantidade usada para fazer o casaco). Resumindo: a unidade “trabalho” (geleia dele, e sua abstração média) inerente às mercadorias dá sua medida de grandeza e a equivalência passa a existir entre as diferenças. É só então que lemos:

[…] tudo que nos disse antes a análise do valor das mercadorias, diz-nos o linho logo que entra em relação com outra mercadoria, o casaco. Só que ele revela seu pensamento em sua linguagem exclusiva, a linguagem das mercadorias. Para dizer que o seu próprio valor foi gerado pelo trabalho em sua abstrata propriedade de trabalho humano, ele diz que o casaco, na medida em que ele lhe equivale, portanto é valor, compõe-se do mesmo trabalho que o linho. Para dizer que sua sublime objetividade de valor é distinta de seu corpo entretelado, ele diz que o valor se parece com um casaco e que, portanto, ele mesmo, como coisa de valor, iguala-se ao casaco, como um ovo ao outro. [Grifo meu]

 

O que interessa nessa passagem é a LINGUAGEM das matérias e do próprio trabalho. Para que o linho se expresse, ele adota, no mercado, a língua da mercadoria – deve obrigatoriamente falar nesse idioma com toda as implicações de equivalência já expostas. Tudo – pois as matérias também falam suas línguas – e todos falam a mesma língua no capitalismo: a língua da mercadoria. Esse trecho indica o caráter fino da análise marxista repetida por filósofos contemporâneos de maneira mais geral – tudo tem valor de mercadoria. Tal valor aqui aparece como uma linguagem específica – um tipo de idioma ao qual dificilmente se escapa se se quiser ter estatuto de existência nas sociedades capitalistas. É justamente pensando na mercadoria como uma forma particular de linguagem – a única válida – que é interessante agora tentar decifrar os moldes nos quais ela está fundada.

Talvez um achado marxista no campo da química seja o mais capaz de indicar alguns caminhos sobre a natureza de tal linguagem. Trata-se de uma comparação entre dois elementos químicos – o ácido butírico e o formiato de propilo – que, embora sejam corpos diferentes, são constituídos das mesmas substâncias químicas: carbono (C), hidrogênio (H) e oxigênio (O), combinadas na mesma porcentagem (C4H8O2). Equiparados, formiato de propilo e ácido butírico teriam, no primeiro, uma simples forma de existência do C4H8O2 e, no segundo, uma composição idêntica derivada da primeira. Ambas mostram a equiparação das substâncias em dois elementos diferentes, o que quer dizer que a composição equivalente de substâncias químicas não implica formas corpóreas idênticas.

Essa imagem condensa uma série de questões apresentadas por Marx. O aspecto central de toda a exposição de O capital anterior ao item dedicado ao fetichismo é a demonstração da fragilidade de considerações feitas até então sobre a mercadoria. Vê-se que desde Aristóteles elas simplesmente ignoravam o fato pueril de que grandezas distintas não podem ser medidas de maneira equiparável. Ou seja, cabia reconhecer que o valor de troca não era intrínseco às mercadorias e, ainda, perguntar-se sobre o que propriamente determinava a igualdade entre diferentes mercadorias proporcionais. Esse algo capaz de igualar mercadorias diferentes só poderia apontar para um terceiro elemento que não era intrínseco às propriedades da mercadoria. É isso o que Marx procurará desenhar, descobrindo o valor do trabalho como algo decisivo na consistência material da mercadoria. Materialidade que, no entanto, aponta para as formas como se dão as relações de trabalho na sociedade capitalista, e não para os componentes que nela estão depositados. Como produtos de um trabalho abstrato, contabilizado nas cristalizações resultantes da geleia indiferenciada de trabalho humano, as mercadorias passam a circular codificadas pela quantificação da substância formadora de valor. Mais precisamente: a grandeza do valor trabalho, extraída de medidas temporais quantificadas de maneira abstrata, passa a ficar impressa no corpo da mercadoria. O que a bela imagem química é capaz de demonstrar é a decomposição dos corpos e a dissolução das diferenças a eles ligadas para que o substrato de qualquer objeto-mercadoria seja exatamente e sempre o mesmo.

Voltemos ao já mencionado paralelo existente entre o pensamento marxista e o modelo de análise freudiano. Com a frase “não o sabem, mas o fazem”, Marx indica a solução de compromisso que ofusca as raízes determinantes de todo o processo da mesma forma como fazia Freud ante as manifestações sintomáticas de suas pacientes histéricas. Esse processo de desnudamento fica claro nas palavras de Norman Geras, que diz: “[…] o que Marx nos conta é que a própria sociedade capitalista é caracterizada por uma qualidade de opacidade, de maneira que ela cria a necessidade de uma metodologia que irá penetrar a aparência para descobrir a realidade, e então, inversamente, por assim dizer, demonstrar por quê essa realidade deveria ser tomada como aparência”.

Como já salientado, a equiparação de diferentes espécies de produtos na troca iguala os diferentes trabalhos, o que demonstra como o valor não é uma indicação da qualidade inerente ao próprio produto. O valor é antes um “hieróglifo social” no qual o segredo capaz de revelar as determinações sociais dos objetos de uso como valores aparece codificado. Comparado à língua oral, que exigiu posteriormente o estudo de suas sintaxes e significados semânticos, o produto encontra o desdobrar de sua gramática não nele mesmo, mas nas relações sociais, expostas nos estudos de Marx. É nesse sentido que o estudo da mercadoria significa mostrar a linguagem nela escamoteada pelo impacto do brilho fetichista.

Desde logo naturalizada pela lógica burguesa, a circulação de mercadorias codificadas aparece pela primeira vez, através dos estudos marxistas, em sua dimensão histórica.  É o que vemos na nota de rodapé n. 33:

Os economistas têm um modo peculiar de proceder. Para eles há apenas duas espécies de instituição, as artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo são artificiais, as da burguesia, naturais. Eles igualam-se nisso aos teólogos, que também distinguem dois tipos de religião. Toda religião, que não sua própria, é uma invenção dos homens, a sua própria no entanto uma revelação divina. — Assim portanto houve história, mas agora não há mais.

É curioso que essa passagem seja intensificada pela continuação do trecho já destacado de A essência do cristianismo de Feuerbach, que diz:

A religião anterior é para a posterior uma idolatria. […] toda religião determinada que considera idólatras as suas irmãs mais antigas, exclui-se […] do destino, da essência geral da religião; ela apenas empurra para as outras religiões o que, se for um erro, é um erro da religião em geral. Só porque tem um outro objeto, um outro conteúdo, porque elevou-se sobre conteúdos anteriores, julga ela estar isenta das leis necessárias e eternas que fundamentam a essência da religião.

Esses dois recortes reunidos indicam o poder da crença e da idolatria que sustenta o capitalismo. Tomado como verdade última e inabalável, tal sistema talvez só possa ser visto em sua versão mística após sua total dissolução. Não há meio do caminho para esse processo – ajustes em tal sistema não são capazes de colocar luz sobre a inconsistência de suas verdades, tarefa que requer a compreensão do âmago de sua racionalidade até que ela imploda por dentro e por inteiro.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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