arquivo Cult | O poliedro Cortázar

arquivo Cult | O poliedro Cortázar

 

Aceita como fantástica pelo próprio autor – “por falta de melhor nome” – a obra de Julio Cortázar (1914-1984) desafia leitores e críticos como um jogo de cubo mágico, oferecendo uma variedade combinatória infinita de figuras e cores. Escritura poliédrica, polimorfa, cujos planos de narração parecem refletir outros planos que reverberam em planos inesperados. A dificuldade em enquadrar textos tão diversos entre si e ao mesmo tempo complexos em sua urdidura narrativa, como Histórias de Cronópios e de Famas, Prosa do observatório e O perseguidor, para ficar em alguns exemplos, leva muitas vezes a mistificações e superficialidades. Como se Cortázar fora um bruxo da prosa, movido por razões alquímicas que nos escapam, manipulando fórmulas cifradas e envolto numa bruma de insondáveis arcanos.

 

Na verdade, o escritor que construiu em O jogo da amarelinha uma versão latino-americana do Ulisses joyceano, como Guimarães Rosa fez em português com Grande sertão: Veredas, seria melhor comparado a um prestidigitador. A manipulação da linguagem que realiza é a do ilusionismo, jogando com truques sofisticados que chegam mesmo a colocar em xeque o próprio mecanismo de prestidigitação, no caso a escrita. Tomados isoladamente, os textos podem parecer ora surrealistas, ora góticos, instaurando atmosferas oníricas que sugerem labirintos inexpugnáveis, quase à maneira de um de seus interlocutores ilustres: Jorge Luis Borges. Por outro lado, se observados em conjunto e cotejados com ensaios, artigos e entrevistas, percebe-se uma poderosa mente fabulatória a montar complicados quebra-cabeças, com peças que estrategicamente mudam de forma para se adaptar a novas imagens e confundir o leitor, alterando bruscamente o conjunto. A publicação de Octaedro e do segundo volume de sua Obra crítica, organizado por Jaime Alazraki, permite uma oportuna reavaliação.

 

Embora a obra de Cortázar possa ser considerada um contundente libelo contra as limitações da racionalidade ocidental e uma questionadora feroz da precariedade do cientificismo castrador que a todos nos orienta, não se pode negar a presença de um raciocínio ordenador, geométrico, meticuloso na construção dessa mesma obra. Esse fascinante processo de articulação circular na ficção cortaziana está muito bem decodificado em O escorpião encalacrado, estudo seminal de David Arrigucci Jr.

 

Cortázar tentava despistar críticos e exegetas afirmando que não havia planejamento na confecção de seus textos, mas que, ao contrário, era conduzido como que por uma necessidade mediúnica. Todo autor, no fim das contas, é tomado pelo texto que compõe e fica à mercê de suas estruturas internas. Acontece que na ficção de Cortázar há vários indícios de uma busca obsessiva pela construção de narrativas precisas, meticulosas e matematicamente arquitetadas, onde há uma condensação exasperante de recursos estilísticos e referências literárias, articulando-se de um modo coeso e intenso sob a chancela do livro impresso. Situações e personagens transitam entre os contos como que a oferecer novos ângulos de uma experiência de vida que jamais poderia ser apreendida de forma absoluta e definitiva. Cenas aparentemente banais são rasgadas por um episódio insólito que altera a ordem estabelecida e expõe uma dimensão estranha do real. Há certos momentos em que o absurdo passeia tranquilo pelo cotidiano e se acomoda ao seu ritmo monótono. Noutras vezes, o cotidiano mesmo revela sua face perversa de irracionalidade, com bruscos solavancos. Em todos os relatos se percebe a condução rigorosamente medida, o salto calculado da frase, o traçado preciso da parábola, a tensão angustiante com que a linguagem é moldada em seus detalhes e efeitos mínimos, sem rebarbas e volteios, até mesmo nos contextos em que nos sentimos à beira do nonsense. Cortázar dá sentido ao impalpável, ao indizível, ao estranhamento sem explicação de seus personagens diante da realidade despida de mitos, de fé, de razão e de esperanças. Faz com que a anormalidade nos pareça normal, ainda que apresente fraturas abissais na ordem aparente das relações.

 

A contenção e a coesão são tão determinantes na montagem das narrativas que acabam por estabelecer uma atmosfera claustrofóbica. Basta lembrar alguns de seus contos mais conhecidos, como: “A casa tomada”, de Bestiário; “A autoestrada do sul”, de Todos os fogos o fogo; “Pescoço de gatinho preto”, de Octaedro; “Ninguém tem culpa”, de Final do jogo. Os personagens experimentam dramas psicológicos e existenciais profundos em espaços fechados, sufocantes, intimidadores, seja numa casa, no metrô, num terrível engarrafamento ou dentro do próprio pulôver. Uma variante metafórica do enclausuramento é representada pelo núcleo temático da doença. O enredo se constrói a partir da enfermidade de um personagem ou da observação dos que estão à volta do moribundo. Veja-se os contos “A saúde dos doentes” e “Senhorita Cora”, em Todos os fogos o fogo; “Liliana chorando” e “As fases de Severo”, em Octaedro.

 

Os textos estão assentados numa sofisticada lógica estocástica, probabilística, em que personagens e enredos funcionam como variáveis na equação da narrativa. A inclusão de um personagem um gesto furtivo no metrô, ou mesmo o surgimento de um ente fantástico – como o inexplicável cavalo branco no conto “Verão”, do livro Octaedro – podem guinar radicalmente os rumos da trama e gerar desfechos inesperados. No meio de um parágrafo, ou de uma frase, pode-se dar a ruptura e o leitor se vê projetado num patamar diverso de realidade, como se estivesse em constante estado de interseção. O conto “O outro céu”, de Todos os fogos o fogo, tem um princípio revelador: “Acontecia-me às vezes que tudo ia por si mesmo, abrandava-se e cedia terreno, aceitando sem resistência que se pudesse passar assim de uma coisa à outra”. Essa travessia intratextual, que poderíamos também chamar de permuta entre estágios de consciência e percepção, é um mecanismo recorrente na obra de Cortázar. O leitor caminha sobre um equilíbrio precário, tem de aceitar as regras do jogo e correr riscos. Cada passo nesse bosque ficcional é provisório, pode-se avançar recuando ou perder-se em atalhos que levam a caminhos inexistentes.

 

Numa entrevista para um documentário de televisão, Cortázar dizia que ao entrar no metrô sempre tinha a sensação de que estava mergulhando numa outra dimensão de espaço e de tempo. Ficava imaginando que ao voltar à superfície poderia se deparar com um mundo ou uma época diferente. Além de usar o próprio metrô como cenário e variante temática em diversas narrativas, a metáfora dos mundos paralelos (defendida hoje até como hipótese científica por certas correntes da física pós-quântica) se configura em sua obra como um forte eixo catalisador. A exploração desses mundos projeta o leitor no campo da incerteza. Os contos tangenciam realidades paralelas que se multiplicam e se refletem como num labirinto de espelhos.

 

Aqui chegamos a uma outra obsessão de Cortázar, cognitiva por excelência, que permite a síntese paradoxal entre o lúdico e o racional, o abstrato e o concreto, a regra e o improviso, o destino e o acaso: os jogos. Não parece casual que o segundo dos quatro volumes de textos recompilados pelo autor, pouco antes de morrer, para a Alianza Editorial, da Espanha, tenha o título de Juegos. Nele estão reunidas 29 narrativas que, segundo o escritor, teriam como fio condutor aquela rubrica. No relato “Nota sobre o tema de um rei e a vingança de um príncipe”, Cortázar explica a gênese do conto “Clone”, presente no mesmo volume. A ideia era criar uma narrativa nos moldes de uma peça de Bach. O escritor se baseou no arranjo de Millicent Silver para oito instrumentos contemporâneos do compositor alemão, gravado pela London Harpsichord Ensemble. O projeto ficou guardado por um tempo. Durante uma viagem à praia, e consultando uma fotocópia da capa do disco, o móbile começou a ser montado: “A regra do jogo era ameaçadora: oito instrumentos deveriam ser representados por oito personagens, oito desenhos sonoros respondendo, alternando ou opondo-se deviam encontrar sua correlação em sentimentos, condutas e relações de oito pessoas”. Mas Cortázar considerou que seria inviável criar um duplo literário da orquestra londrina, traçando relações entre a vida dos personagens e os instrumentos. Somente depois de uma conversa casual conseguiu chegar à solução do dilema. Inspirado no madrigalista da Renascença Carlo Gesualdo, transformou os oito instrumentos musicais em integrantes de um conjunto vocal. A partir daí seria possível desenvolver a ação dramática espelhada com os sucessivos movimentos da Oferenda musical de Bach, segundo “o prazer que o escritor se havia proposto antes de mais nada”. O fato de o compositor Gesualdo, príncipe de Venosa, ter assassinado a esposa acaba oferecendo um tempero especial à trama.

 

A obsessão por jogos fica evidente também em seu romance O jogo da amarelinha. Desde o título, Cortázar desenvolve um imenso painel de “peças” (narrativas) que se intercambiam, podem ser montadas pelo leitor e até possui um roteiro de leitura oferecido pelo escritor. Esse metatexto provocador e irônico registra a busca de um escritor por sua identidade, pelo sentido da existência, por uma possível salvação do inferno pelo amor, uma variação do tropo poesia como purificação utópica, mas principalmente se trata da procura do próprio romance. O texto que narra suas possibilidades de se tornar narração, autotelicamente.

 

A imagem do percurso entre céu e inferno, no jogo infantil, recai perfeitamente como metáfora da trajetória do escritor, dividido entre anjos e demônios não mais metafísicos, mas terrivelmente humanos, de carne e desejo. Há quem hoje considere O jogo da amarelinha o precursor do hipertexto. De fato, está ali uma colagem de textos que podem ser refeitos, reordenados, recompostos em outros textos originais. Um romance estruturalmente híbrido e desdobrável, de onde se pode tirar outros romances, contos, ou até ensaios. Em A volta ao dia em oitenta mundos, Cortázar cria o inventor de uma máquina complexa para ler O jogo da amarelinha, a Rayuel-O-Matic. Há gráficos da engenhoca, com instruções para instalação e uso. Auto-ironização extrema com as supostas dificuldades de leitura de seu denso romance, mas também um desenvolvimento bem-humorado do processo metalinguístico, dos jogos do texto consigo mesmo.

 

Além de demonstrar o longo e exaustivo processo de elaboração de um pequeno conto ou de um romance de quase 600 páginas, os exemplos acima apontam para uma outra fixação cortaziana. O livro Octaedro, cujo título se refere a uma figura geométrica de oito faces, enfeixa oito contos, assim como Bestiário e Todos os fogos o fogo. Os três livros parecem compor um complexo artifício de simetrias, correspondências, interconexões. Em todos se apresentam a súmula das inquietações de Cortázar: os seres extraordinários, o limite entre o real e o absurdo, as relações pessoais marcadas por uma comunicação precária e truncada, os jogos com a temporalidade, a metalinguagem e a perda dos liames entre a razão e o entorno. Sob a figura perfeita de um octaedro, abrigam-se as inquietações e os questionamentos mais profundos do autor, muitas vezes travestido em seus personagens. Cada conto representa uma face da figura. As faces dialogam entre si segundo uma rigorosa combinatória vetorial. Formam-se pares temáticos: dois contos falam de literatura, dois de doença, dois de jogos no metrô e dois de relacionamentos. As simetrias se propagam. O mesmo jogo pode ser aplicado a Bestiário e Todos os fogos o fogo.

 

Num outro livro maravilhoso como Prosa do observatório – mistura de crônica, ensaio, prosa poética, apontamentos de viagem –, a obsessão pela forma, pelo geométrico, se amalgama com a observação de monumentos e edificações indianos. A reflexão sobre a paisagem ganha contornos filosóficos e cosmológicos, resultando num texto delicioso, pleno de musicalidade. A galáxia reflete o fundo do oceano, plânctons e estrelas se irmanam.

 

Ao contrário dos escritores que tornaram a literatura latino-americana conhecida internacionalmente como a geração do realismo fantástico, e ainda que pertencendo ao contexto, a obra de Cortázar está distante do neobarroquíssimo de inspiração lezamesca e não tem parentesco algum com Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Seus textos circulam em outro código e resultam do cruzamento de Edgar Alan Poe com Anton Tchekhov, de Ernest Hemingway com Franz Kafka, de Roberto Arlt com Jorge Luis Borges. Será preciso buscar também correspondências com a poesia de Rimbaud e Mallarmé, de Lugones e Juarrós, com a ironia patafísica de Alfred Jarry, com as reflexões poético-existenciais de Paul Valéry e os delírios metafísico-linguísticos de Antonin Artaud.

 

Um livro como Histórias de Cronópios e de Famas, com sua mitologia fantástica e alta voltagem de poeticidade, está próximo de Borges e de Italo Calvino. Final do jogo talvez exemplifique um de seus livros em que o encontro com Kafka esteja mais acentuado. A história do saxofonista drogado e boêmio Johnny Carter, em O perseguidor, é puro Hemingway. Os textos de Cortázar não são feitos de transbordamento metafórico, tampouco de estilhaçamento do significante, mas de distorções sutis do significado, de modulações delicadas na superfície do discurso. Se é pertinente comparar seu estilo ao improviso jazzístico, em analogia às performances de Charlie Parker e Miles Davis que tanto admirava, também se deve lembrar da referência às fugas bachianas, com seu rigor construtivo.

 

Mesmo sendo um admirador fervoroso do surrealismo, como se constata em artigo de 1948 sobre a morte de Antonin Artaud, Cortázar nunca se rendeu ao automatismo da escrita, ou ao fluxo livre da consciência. Para ele, o surrealismo era importante como uma postura filosófica – que conduzisse ao “reconhecimento da realidade como poética” – mais do que uma corrente ou modismo literário. Ainda nesse artigo, talvez esteja uma das sínteses possíveis de seu pensamento sobre a relação entre literatura e realidade: “viver importa mais do que escrever, a menos que escrever seja – como tão poucas vezes – um viver”. Esse ideal da arte como um modo de existência, contrária à rotinização e aos padrões socialmente impostos, traduzida ainda no desejo de que “a vida saia dos livros”, está na raiz de toda a ficção de Cortázar. A literatura não poderia jamais congelar a vida, mas transpirá-la, impregnar-se dela. Caberia à literatura ser tão intensa e contraditória como a vida, sem máscaras ou fórmulas. Como no exemplo extraído de uma carta de Artaud, escrita no asilo de loucos de Rodez, seu desejo não era apenas ser escritor para escrever, mas para viver o escrito, para dar ao texto a pulsação da existência, injetando libido nas entrelinhas. Escritura e vida emaranhadas no mesmo corpo, sem a intermediação ancestral da lâmina fria do espelho.

 

Originalmente, Cortázar era poeta. Seu livro de estreia, Los reyes, de 1949, é um poema dramático sobre o mito de Teseu e o Minotauro, tema que seria reaproveitado em outros livros. Escreveu também sonetos de dicção mallarmeana, quase formalistas. Em A volta ao dia em oitenta mundos publicou alguns poemas que fazem parte de uma longa série, escrita nos anos 50. Mas é sobretudo em seus ensaios sobre literatura que se tem a noção mais precisa da importância da poesia na vida e na obra de Cortázar. No artigo intitulado “Para uma poética”, de 1954, ele faz uma linda aproximação entre a visão de mundo do poeta e a dos povos primitivos. Ambos lidam com o real de forma analógica. Há uma relação de encantamento com o existente, de identidade sem mediações entre seres e coisas, entre mente e matéria. Segundo Cortázar, “a admiração pelo que pode ser nomeado ou aludido engendra a poesia, que se proporá precisamente a essa nominação, cujas raízes de clara origem mágico-poéticas persistem na linguagem, grande poema coletivo do homem” (o grifo é do autor). Como um “mago metafísico” o poeta se identifica com aquilo que nomeia, pois é justamente aquele que “agrega ao seu ser as essências do que canta (…)”. Já em 1941, num artigo sobre Rimbaud, assinado com o pseudônimo de Julio Denis, Cortázar afirmava que via na poesia “uma espécie de desenfreamento total do ser, sua apresentação absoluta, sua enteléquia”.

 

Tal qual um rito iniciático que encarna o mito fundador, a poesia estaria na origem de tudo, especialmente da linguagem, que nos torna demasiado humanos. Assim também está no início do percurso textual de Cortázar, dividido entre o magistério, as traduções e o exercício de uma crítica literária brilhante numa Buenos Aires enigmática, labiríntica, universal numa esquina, provinciana noutra. Como Borges, ele também procurou o fio de Ariadne. Vivendo em Paris, a partir de 1951, incorporou à sua experiência literária o deslocamento afetivo-intelectual do exílio. As cisões vão se multiplicando, na alma e na página em branco, os caminhos se bifurcam, a máquina do mundo se abre de Saint-Germain-des-Prés a Bánfield, de Nova York a Outro Preto, de Jaipur ao planeta Faros. Dessa máquina saem axolotes, mancúspias, anguilas, Maga, Paco, Morelli, Lucho, Margrit e muitos mais. Estamos todos lá.

Texto publicado originalmente na edição 39 da Cult, de outubro de 2000.

Reynaldo Damazio é editor, crítico literário e autor. Formado em Ciências Sociais pela USP. Foi co-editor do jornal “Caderno de Leitura”, da EdUSP, e colaborador do Guia Folha – Livros, Discos, Filmes, da Folha de S.Paulo.

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