O usuário de drogas e sua família: táticas de espionagem e antiespionagem no radar da recuperação

O usuário de drogas e sua família: táticas de espionagem e antiespionagem no radar da recuperação
(Imagem: Adobe Stock)

 

O usuário de substâncias psicoativas encontra-se frequentemente sob vigilância, chegando até a ser espionado. Muito antes de iniciar o tratamento, seus familiares, incertos sobre como enfrentar a situação, aprendem a monitorar sua rotina, bem como a analisar seus gestos e estados de ânimo. Em resposta, o usuário desenvolve mecanismos de defesa. Assim, quando ambos, usuário e família, buscam tratamento, o que frequentemente se vê é uma espécie de “jogo de gato e rato”, marcado por métodos de “espionagem” cada vez mais sofisticados e táticas de “antiespionagem” progressivamente mais rudimentares.

A família e seu poderoso arsenal de espionagem

Com o passar dos anos, a família geralmente desenvolve um sofisticado “sistema de detecção facial” e de “análise de biomecânica”. Eles afirmam: “Só de bater o olho, eu sei se ele usou cocaína. Quando ele chega me olhando daquela maneira, com aquele tique…”; “Quando ele vira a chave da porta, antes mesmo de entrar em casa, eu já percebo.” Há também observações como: “Quando ele chega em casa andando de determinada forma”, “Se ele entra em casa, diz apenas ‘oi’ e sobe direto para o quarto”, “Se os tremores se intensificam na hora de comer” ou “Se a postura está mais reclinada”, a família imediatamente detecta que a pessoa consumiu algo.

A família, muitas vezes, acaba usando – seja inadvertidamente, intuitivamente ou mesmo intencionalmente – uma “rede de informantes”: balconistas de botequins, garçons de restaurantes, donos de bancas de revistas do bairro, o vendedor da farmácia e o mecânico da oficina em frente à biqueira. Em situações mais frequentes, o “informante” se alia à causa do familiar, oferecendo seu número de celular ou ligando ativamente e em segredo quando o usuário perde o controle ou se envolve em confusões.

Madalena, de 61 anos, é casada com Cristiano, carinhosamente apelidado por ela de “Cristo” quando estão a sós. Cristiano bebe há quarenta anos, sendo vinte desses anos marcados por dependência. Recentemente, Madalena tem dedicado grande parte do seu dia cuidando de Cristiano. Nos últimos meses, ele passou a não voltar para casa à noite e, em algumas ocasiões, foi encontrado desacordado na rua. Já houve dois episódios em que o dono do bar chamou o SAMU para socorrê-lo. Quando o dia começa a escurecer e Cristiano ainda não retornou, Madalena se inquieta. Ela então telefona para seus filhos, vizinhos e conhecidos de Cristiano para verificar se ele está com algum deles. Caso contrário, ela consulta uma lista de contatos que acumulou ao longo dos anos e começa a fazer ligações. Certa vez, ela mostrou parte dessa lista para a assistente social da equipe.

CRISTO Ângela vizinha restaurante
CRISTO Amorim garçom
CRISTO Arthur carteiro
CRISTO Dália banca vizinha
CRISTO João dono boteco
CRISTO Júlia bar Aliança
CRISTO Lúcia padoca
CRISTO Tales oficina em frente

Como as rotinas do usuário vão ao longo do tempo se tornando cada vez mais previsíveis, sempre em torno do consumo de alguma substância, a família também aprende a mapear os locais onde ele provavelmente seria encontrado naquele horário. Eles começam pelos locais esperados – bar da esquina, apartamento do amigo, posto de gasolina da avenida. Em situações derradeiras, os prontos-socorros e prontos-atendimentos também são visitados, sem falar nas biqueiras, “quebradas” e “mocós”. Delegacias são procuradas para registrar queixa de desaparecimento.

Outra prática comum, já no campo da espionagem, é o hábito da família de revistar os locais de privacidade do paciente – o armário do quarto, as gavetas do escritório, atrás dos livros, debaixo dos bancos do carro, no quartinho dos fundos e o banheiro, assim como os seus objetos pessoais – dentro de bolsas e nos bolsos internos de casacos e paletós, além das marcas de uso nas roupas e de encontrar sedas, pinos e farelos. Vale tudo em busca de alguma evidência de que a situação voltou a “encrespar”, especialmente se o “sistema de detecção facial” já notou alguma alteração.

Por fim, há os métodos de espionagem que beiram a clandestinidade ou são nitidamente ilegais – todos igualmente inapropriados –, como a prática de enviar objetos do membro da família para laboratórios que se dispõem a pesquisar a presença de substâncias psicoativas – baseados em anúncios ou argumentos charlatanescos –, a contratação de detetives particulares e até mesmo a instalação de aplicativos-espiões (spyware) que permitem saber por onde o indivíduo anda e com quem se comunica.

Talvez o hábito de monitorar o uso de drogas utilizando métodos de “olheiro” ou de “espião” advenha, pelo menos em parte, do fato de o dependente tentar inicialmente manter seu uso em segredo “porque usar drogas ou beber na adolescência é proibido” ou porque, intuitivamente, perceba que seu hábito – progressivamente cada vez mais compulsivo – está invadindo e perturbando as regras habituais de sua casa ou ambiente de trabalho – por exemplo, o marido que começa a sentir a necessidade de tomar um cálice de vinho a mais durante o jantar em família, chamando a atenção da esposa, ou de tomar um vermute na hora do almoço, longe dos olhos dos colegas de escritório. A família – ou mesmo os colegas de trabalho mais próximos –, ao invés de tocar no assunto, expressar sua preocupação, manifestar sua discordância em termos aceitáveis e flexíveis – e até mesmo buscar uma “opinião de especialista” –, opta pelo silêncio ou pelo distanciamento, escolhendo, em vez de ir ao cerne da questão, adotar atitudes de olheiro ou espião.

O usuário adota métodos de antiespionagem

Inicialmente, o usuário, muitas vezes de forma inadvertida, adota estratégias antiespionagem, ou seja, medidas e táticas para detectar, prevenir e neutralizar as atividades de espionagem de sua família. No começo, a família ainda nem percebeu o padrão de consumo indesejado ou inadmissível, mas ele teme ser descoberto e se antecipa.

Conforme o tempo avança e a gravidade da dependência aumenta, prestar atenção a esse tipo de detalhe vai se tornando extremamente complexo e cognitivamente dispendioso para a mente do usuário, cada vez mais focada e interessada em consumir substâncias. Além disso, a única medida que poderia efetivamente inibir ou bloquear esse comportamento que se agiganta – dar limites e consequências – nunca fora instituída de fato, salvo em momentos em que tudo parece estar muito grave, gerando uma discussão aqui, uma briga acolá, “uma cadeira quente” com a presença de vários membros da família, que logo se acaba e tudo retorna ao habitual — e glacial — “velho e bom” silêncio.

Os sistemas de espionagem e antiespionagem colapsam

Em um dado momento, a curva ascendente do “radar familiar” cruza com a curva descente do “comportamento antiespionagem” do usuário, que se torna cada vez mais descuidado. A partir desse ponto, mesmo percebendo claramente que está sendo monitorado por “métodos ocultos”, ele simplesmente deixa de se importar – “não está nem aí mais”, como dizem alguns familiares. Na verdade, ele nunca esteve; contudo, por questões de manejo, era conveniente para o dependente acomodar seu consumo às demandas familiares contrárias. Diante do impasse, a realidade se evidencia: usar já se tornara sua prioridade há muito tempo.

Esse é o instante em que “pontas de baseados” começam a aparecer no carro, pinos de cocaína são achados na escada da sala, “adegas de garrafas vazias de vinho” são espantosamente descobertas pela família no gabinete do banheiro. O usuário, cada vez mais desprovido de estratégias antiespionagem refinadas – cognitivamente muito dispendiosas –, passa simplesmente a agir em prol do consumo e depois simplesmente nega que foi ele, afirma que o achado ainda era coisa antiga, sobre a qual já haviam conversado e resolvido. Outras vezes, sentindo-se injustiçado, ele se revolta contra e exige ser respeitado em sua privacidade — de fato, há muito tempo invadida — ou pedindo mais um “voto de confiança”.

Façamos uma pausa para refletir. Imagine se um jatinho, sem plano de voo ou autorização prévia, invadisse o espaço aéreo de uma grande potência. A discussão não se centraria nas possíveis consequências, mas sim em quantos minutos – ou segundos – elas chegariam, na forma de caças ou mísseis. Uma dinâmica semelhante se estabelece, ainda que de maneira cada vez mais patética, entre o usuário – a cada dia mais dependente e menos apto a lidar com a realidade – e a família, extremamente alerta, mas sem protocolo de ação ou autoridade. É o momento em que o usuário chega em casa extremamente intoxicado, quebra o sofá da sala, repreende a mãe e, ao mesmo tempo, nega qualquer uso de drogas ao pai. É quando começa a vender objetos de valor financeiro ou sentimental para adquirir drogas, comete pequenos furtos, eleva o tom de voz e dá vazão a impulsos agressivos.

Não é mais necessário ser “olheiro” ou “espião” quando tudo está à vista. O espaço aéreo foi invadido por uma esquadrilha “compulsivamente” armada. O essencial agora é tomar uma atitude. E a primeira atitude a ser tomada é desligar esse radar, agora obsoleto: um detector sem protocolos de ação desde o início, que se tornou um consumidor voraz das energias da família e gerador de medo e pânico, disparando atualmente mediante qualquer sinal de ansiedade.

Reinstalando o sistema de cuidados e contrapartidas

Neste momento, tudo é confuso. O “radar familiar”, que por um bom tempo foi utilizado para detectar alterações no comportamento do paciente, tornou-se o principal instrumento de defesa contra suas ameaças e explosões de fúria. Por isso em situações extremas, uma internação breve pode ser a maneira mais segura de “desligá-lo”.

Na realidade – e obviamente –, o tilt também é do paciente – afinal de contas, é ele quem está internado. O uso de drogas ao longo dos anos “desligou” sua função radar, representada pelo córtex pré-frontal, encarregado de verificar, em tempo real e instantaneamente, se as atitudes que estão sendo tomadas são adequadas, culturalmente compatíveis e viáveis. Sem esse, um impulso não encontra filtro ou freios racionais. É importante saber que uma pessoa que atinge padrões compulsivos graves precisa de um tempo maior para reequilibrar ou ligar novamente esse dispositivo – em alguns casos, infelizmente, volta a funcionar de forma muito branda ou de maneira extremamente avariada.

Por isso, inicialmente, o paciente precisa trabalhar com informações objetivas, binárias: “sim/não”, “pode/não pode”. Contratos terapêuticos, nessa fase, não podem trabalhar com exceções à regra, até que as “leis pétreas” do tratamento estejam bem estabelecidas – é sobre elas que os novos padrões de relacionamento, baseados em regras e preceitos éticos, poderão ser discutidos e instaurados. Por isso e idealmente, ele deve ser mantido “desligado” – dentro de locais onde não seja possível usar substâncias psicoativas – e depois ligado de maneira controlada. Isso vai depender do nível de estrago – que pode ser em parte mapeado por testes neuropsicológicos: casos de maior comprometimento permanecem restritos a “zonas de segurança”, estabelecidas pelo plano de tratamento, sob supervisão direta da equipe: por exemplo, internação domiciliar com equipe de enfermagem, ou acompanhante vinte e quatro horas – espécies de guarda-costas do cuidado.

Com o passar das semanas é possível, de maneira supervisionada e sempre com um acompanhante de cuidado – os olhos da equipe de tratamento –, entender como está a capacidade de tomada de decisão pré-frontal do paciente, o seu radar. Tal funcionamento acontece independentemente da vontade do indivíduo. No entanto, partindo do pressuposto do “não” combinado durante a internação na clínica e da presença concreta do acompanhante, aumentam as chances de seu alcance se voltar para os outros desejos e planos que o “ex-usuário” anseia novamente estruturar – retomada de suas rotinas básicas, controle de suas atribuições pessoais, prática de atividades esportivas, retomada de atividades acadêmicas e profissionais – até o ponto em que os ganhos e reforços provenientes de tais atividades comecem a retroalimentar o sistema de tal maneira, que voltar a usar seria simplesmente um contrassenso. Desse ponto em diante, é muito improvável – apesar de para sempre possível – que uma pessoa em recuperação volte a usar drogas.

Mas, e a família nessa história toda? A família precisa “desligar” seu radar de vigilância para voltar a ser família. Vigiar é para estranhos, cuidar é para os que amamos ou com quem pelo menos somos capazes de estabelecer relações de confiança. A blindagem comportamental do tratamento também serve para que a família consiga fazer essa conversão: aquilo que anteriormente suscitava “vigia” e “espionagem” deve ser provisoriamente substituído por “medidas terapêuticas de monitoramento”, sob a responsabilidade da equipe de tratamento, para que ela possa ligar o seu “radar de cuidado” e, baseado em critérios estritamente afetivos, reassumir seu papel de… família: voltar a se envolver afetivamente com o usuário – dentro das possibilidades que restaram –, oferecendo apoio afetivo, sem nunca mais negociar com afetos negativos relacionados a fissuras e muito menos com recaídas – acabaram-se para sempre as justificativas.

De início o clima é de insegurança – de caráter duvidoso, por vezes, cético. Angustiante e pleno de sentimentos dúbios. Para tornar essa fase suportável, é essencial estar estritamente focados no “presente do presente”, lembrar que para o radar não existe passado e o futuro é só aquele que sua visão limitada consegue perceber de modo impreciso – e ainda por cima, nesse momento, por razões diametralmente opostas ambos os radares foram “desligados” pelo tratamento.

Por isso, no momento de reativá-los, cobranças sob o ponto de vista da culpa e expectativa para além do que foi estabelecido pelo plano “de voo” terapêutico estão absolutamente fora de cogitação e propósito: elas não fazem sentido para o que está sendo trabalhado e sobrecarregam um sistema ainda frágil, que certamente voltará a colapsar até o ponto de “não ter mais conserto”. O estado da arte do tratamento reside justamente na habilidade de possibilitar que ambos os lados decolem e ganhem os céus “sem radar”, baseados apenas no “plano de voo” do tratamento.

Com essa clareza bem assessorada – e, desta vez, disposta a apoiar a pessoa em recuperação nas resoluções das tarefas propostas pelo tratamento, sem medo de questioná-la ou exprimir dúvidas e angústias se de fato ela ainda permanece abstinente – e do quão catastrófico para a relação seria se ela retomasse o consumo – será possível, com o passar das semanas, meses e anos, entender se ainda faz sentido estarem juntos e, a partir do olho no olho cotidiano, livre de interferências psicoativas, o porque e para que ainda desejam permanecer dessa forma: “em família”.

Aliás, a assistente social que cuidou do caso Cristiano – “Cristo” para os íntimos – e a esposa dele, Madalena, se encontraram fortuitamente, seis anos depois, na fila do supermercado, no bairro onde moram. Madalena ficou toda emocionada por rever a profissional que muito a ajudara e tão bem a aconselhara naquele momento. Fizeram as perguntas protocolares que pessoas educadas fazem quando se reencontram depois de muito tempo. Quando a assistente social perguntou sobre Cristiano, sua esposa abriu um sorriso agradecido e orgulhoso: “– Ah! hoje é outro homem! Que avô maravilhoso se tornou! Mas o que mudou mesmo foi a lista telefônica do meu celular”. E, enquanto evocava na memória da profissional aquele atendimento, mostrou a ela a nova “relação de Cristo”:

CRISTO Maria Bonacim terapeuta ocupacional
CRISTO Dr Simão psiquiatra
CRISTO Leo padrinho AA
CRISTO Ana Lúcia terapeuta
CRISTO Márcio amigo grupo corrida
CRISTO Maridão.

Marcelo Ribeiro é psiquiatra, doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP e coordenador do Curso de Especialização em Dependência Química do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP).


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