Sobre vampiros e capital

Sobre vampiros e capital

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“Se perdermos, sequer os mortos estarão a salvo.” Essa é uma frase conhecida de Walter Benjamin, que ganhou atualidade inaudita nas últimas semanas. Benjamin, quando a enunciou, certamente não imaginaria o tipo de fenômeno que faria dela algo de tão premonitório. Se quisermos, que faria dela o alerta sobre o destino que o desenvolvimento exponencial do capitalismo procura nos impor.

Há semanas, o Brasil descobriu uma peça publicitária de automóvel na qual aquilo que alguns chamam de “inteligência artificial” havia ressuscitado Elis Regina. Não é o caso de fazer aqui a enésima descrição desse momento áureo de desenvolvimento nacional no qual descobrimos que Elis estava viva, dirigindo uma kombi, cantando e batendo um racha com sua filha na contramão. Mas seria o caso de lembrar de uma coincidência não exatamente feliz, embora bastante paradigmática. No mesmo momento em que mortos voltavam como zumbis a celebrar o novo lançamento automotivo do momento, atores e atrizes norte-americanos entravam em greve pela primeira vez em quarenta anos. A greve visava impedir que tais profissionais fossem obrigados a aceitar contratos nos quais a indústria do entretenimento teria direito a explorar suas “imagens” em produções múltiplas, graças às montagens da mesma inteligência artificial. Ou seja, você assina um contrato para fazer uma série e a inteligência artificial faz algo parecido com você continuar a trabalhar em outras séries e publicidades, por tempo indefinido, na vida e na morte. Assim, realiza-se o milagre de mais rendimento, menos empregos e menos custos.

Quando a peça publicitária de automóvel apareceu não faltou quem, com um ar grave e profundo, falasse que estávamos diante de um “dilema moral” insolúvel. Só que, nesse caso, não havia dilema moral algum. Dilema existe quando temos duas proposições contrárias aceitáveis, sob perspectivas distintas. O dilema serve para discutir qual perspectiva deve prevalecer. Mas nesse caso, não há dilema moral, há simplesmente os efeitos de uma patologia social, o que é algo totalmente diferente. Não há posição moral alguma que admita que uma pessoa, seja ela “herdeiro” ou não, tenha o direito sobre a personalidade de um outro. A patologia social que tal caso explicita consiste em confundir o direito que herdeiros teriam sobre os bens produzidos por um parente com o direito que essas mesmas pessoas teriam de dispor da personalidade desse outro. A patologia está em compreender a personalidade como um bem entre outros, como uma mercadoria entre outras. O que diz muito sobre o tipo de sociedade que nos foi imposta.

Poderíamos criticar a noção de que produções culturais deveriam ser objeto de direito de herança. Pois seria possível dizer que tais produções foram frutos diretos da circulação de experiências, de outras produções culturais, de processos de formação, que a sociedade colocou à disposição dos sujeitos. Nesse sentido, seria natural que tais produções, depois da morte de suas autoras e autores, voltassem à condição de bem comum. Mas nossa sociedade preferiu permitir que filhos, filhas, netos, primos etc. vampirizem a produção cultural social. Só que mesmo esse direito diz respeito à comercialização de produtos produzidos por tais artistas e, em hipótese alguma, poderia se estender à sua personalidade.

Nesse contexto, “personalidade” significa as decisões e ações que tal pessoa faria, como, por exemplo, dizer: “vote em candidato X, sustente a guerra Y, compre o carro Z”. Ou seja, estamos falando das deliberações que alguém teria em vida. Tratar a personalidade de outro como algo que cai sob o direito de propriedade de bens, tratar herdeiros como médiuns que recebem espíritos e sabem o que eles decidiriam e deliberariam, é apenas uma versão contemporânea do que tem nome bastante claro há séculos, a saber, escravidão. Uma escravidão de mortos, já que eles trabalham sem nenhuma forma de consentimento. Mas uma sociedade é composta de vivos e de mortos. Um problema social fundamental é como não matar os mortos, como preservar sua memória e as experiências que eles ainda fazem viver.

O capitalismo se funda, entre outras coisas, nas ilusões do caráter inesgotável da extração de valor da terra e do trabalho. Ele age como se não houvesse limite algum para a sujeição da terra e do trabalho humano à condição de suportes de produção do valor. No caso da terra, vemos agora o que isso realmente significa: uma junção entre “progresso” e devastação que nos empurra a uma crise ecológica cujas consequências sequer começamos a realmente sentir. E não se trata de nenhum impacto do “ser humano” na natureza. Antes do advento do capitalismo, de sua lógica de economia fóssil e de crescimento exponencial, o impacto da humanidade no meio ambiente terrestre era residual.

No entanto, o mesmo é feito com o trabalho. O caso da publicidade em questão mostra a verdadeira função do desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo atual, a saber, aprofundar a espoliação do trabalho humano. Por isso, a greve das atrizes e atores norte-americanos é algo que explicita o verdadeiro “dilema moral” que o caso da publicidade da kombi da Elis nos coloca. Da mesma forma como profissionais do espetáculo podem ser obrigados a se sujeitar a contratos que lhes fazem ser fornecedores imortais de trabalho e lucro para a indústria cinematográfica, podemos imaginar que tal procedimento será generalizado para outros setores. Assim, professoras e professores poderão ser obrigados a assinar contratos nos quais eles continuam a dar aulas depois de mortos, interagindo com alunas e alunos através da dita inteligência artificial. Ou mesmo durante a vida, sendo que um algoritmo construiria as respostas que você provavelmente daria, as associações que você provavelmente faria a partir do que você teria já escrito e publicado.

Dentre os vários efeitos dessa generalização de um novo regime de trabalho, além da precarização generalizada pela qual alguém trabalharia mais e sem a necessidade de contratar outras pessoas, haveria seguramente o aprofundamento do sofrimento psíquico que o neoliberalismo nos impõe. Pois agora o nível de alienação atinge um patamar até então impensável. Sua personalidade não é mais sua. Depois de morto, você pode continuar a agir a partir dos interesses de rentabilização das empresas e corporações. Uma empresa pode exigir esse tipo de cláusula para te contratar, e você não terá como dizer “não”. Pois esquecemos de um princípio elementar: a história do capitalismo não é a história de seus desenvolvimentos tecnológicos. Ela é a história das lutas operárias, da força que a classe trabalhadora tem para impor freios ao processo de violência e espoliação ao qual ela está submetida. Mas, ao que parece, estamos muito ocupados para lembrar disso.

Em um livro chamado Cosmópolis, de Don Delillo, o protagonista afirma: “no futuro, as pessoas não morrerão, elas se tornarão informação”. Como sempre, artistas percebem os riscos antes de todos. Só faltou completar: “informação no interesse de quem?”.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.


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