Cunhar a arte pela qual vivemos
(Foto: Bob Sousa)
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Fotos de Bob Sousa
Não fosse o vibrante espetáculo que é, O que nos mantém vivos, do Teatro Promíscuo, dirigido por Rogério Tarifa, já valeria a ida ao Teatro Anchieta pela bela e justíssima homenagem prestada ao ator Renato Borghi, 85 anos de idade, 65 de carreira. E não se trata de uma celebração protocolar, em que o encômio está somente no nível de um discurso voltado única e exclusivamente em direção ao passado glorioso do homenageado. Antes, o que se vê em cena é um artista detentor de uma presença e de um talento admiráveis que, a despeito de certa fragilidade física, mergulha – na companhia de intérpretes e músicos excelentes – em uma aventura cênica marcada pelo signo do contemporâneo.
Renato Borghi é um ator absolutamente contemporâneo a nós, e a sua capacidade criativa (como a de outros tantos artistas de sua geração), em um país de energia vital, mas de pulsão mórbida como o nosso, é o que nos mantém vivos. Espécie de quarta versão da montagem de O que mantém um homem vivo?, encenada por Borghi e Esther Góes originalmente em 1973; remontada pelos mesmos intérpretes em 1982; e, mais recentemente (2019), reencenada por Borghi ao lado de Elcio Nogueira Seixas e Georgette Fadel, o “ato-espetáculo-musical”, como a empreitada é nomeada, faz do teatro e da poesia de Bertolt Brecht seu centro nervoso, aliando-os não somente a referências à carreira do próprio Borghi e dos demais artistas em cena, como também a momentos especiais da vida cultural brasileira, de modo geral, e, em especial, ao conturbado contexto político vivido pelo país nos últimos anos.
Entre os atores brasileiros devotados quase que exclusivamente ao teatro (o intérprete evoca em cena o depoimento de Marília Pêra, que achava espantosa a fidelidade dele ao palco), são poucos os que mantiveram sempre alerta o espírito de transgressão, filiados a uma cultura que não se acomodou ao culto da própria personalidade, e mais raros ainda os que, para além das malhas do discurso engajado, trabalharam em espetáculos comprometidos reiteradamente com a seiva da inovação.
Então, há que se reverenciar com a alegria da prova dos nove oswaldiana a figura de Renato Borghi, cuja trajetória artística – firme, e sempre iconoclástica – alimentou-se metodicamente tanto do estudo dos grandes mestres do teatro de vanguarda como da experiência do caldo de cultura de um país que mistura circo e melodrama em doses iguais, experiência essa da qual o impulso inicial talvez tenha sido a audição da voz comovente de Dalva de Oliveira, a Billie Holiday dos trópicos, segundo defendia Elis Regina.
Fosse outro o resultado das últimas eleições presidenciais, O que nos mantém vivos traria um certo travo de amargor ao paladar dos espectadores. O que ocorre é justamente o contrário: um clima de alívio, de esperança e de fruição da possibilidade de reconstrução de muitas coisas derruídas paira sobre a costura dramatúrgica do espetáculo e sobre os comentários apensos às cenas, embora o próprio material brechtiano constitua um antídoto para um risco iminente: a esquerda e as iniciativas teatrais politizadas já verem como caducas as formas da extrema direita brasileira (da qual Jair Bolsonaro é um títere, mas ainda perigoso) e quererem prematuramente anunciar seu fim ou mesmo triunfar sobre elas.
Os excertos escolhidos parecem dialogar diretamente com o espanto e a desilusão política que tomaram conta dos meios artísticos e intelectuais nos anos pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff. Por um lado, a operação é problemática por fazer com que o figurino dos temas e das formas do teatro dialético de Brecht ajuste-se plenamente ao corpo da nossa mais recente revolta – o que desidrataria, logo de saída, a iniciativa, levando-nos ao uso de uma roupagem de indignação que é puro prêt-à-porter. Por outro lado, em razão da direção atenta e sensível de Rogério Tarifa e do comprometimento de todos em cena com a natureza do projeto, o grande mestre alemão está ali o tempo todo contrariando a apropriação anti-dialética que às vezes se faz dele.
Mesmo diluída na colagem a que se propõe o espetáculo, Santa Joana dos Matadouros mostra a contundência de seus modos de composição. “A combinação inesperada de brutalismo e gosto de explicar”, conforme defende Roberto Schwarz no belo estudo que fez da peça, “é um achado de Brecht e formaliza um aspecto real da posição de esquerda”.
Os espectadores menos iludidos com o fim do bolsonarismo haverão de se impressionar mais com a atualidade da crítica de Brecht às fases cíclicas do capitalismo, tecida em chave de “generalidades” conforme alerta Schwarz, e surpreender-se-ão com uma reflexão teórica – feita pelo ensaísta – que em cena adquire um sabor todo especial:
Emprestando imaginação ao contraste entre as vozes da peça, verdadeiramente impressionante, e cuja força se deve a estas generalidades, o leitor [Schwarz refere-se à publicação da peça] ouvirá – esperamos – algo como a música da sociedade global. Seja dito de passagem que poucos anos depois Oswald de Andrade tentava coisa parecida no Rei da vela (1937).
Estarmos simultaneamente diante do Renato-Abelardo e do Renato-intérprete brechtiano é um dos grandes prazeres intelectuais proporcionados pela montagem.
O outro texto de Brecht que ocupa grande parte de O que nos mantém vivos é A resistível ascensão de Arturo Ui, cujas ligações com o atual cenário político brasileiro são por demais evidentes e devem por isso ser postas de lado. No brilhante ensaio dedicado a Brecht publicado em Homens em tempos sombrios, Hanna Arendt recupera as notas finais que o próprio dramaturgo escreveu sobre a peça:
Os grandes criminosos políticos devem ser expostos por todos os meios, especialmente pelo ridículo. Pois são sobretudo não grandes criminosos políticos, mas os perpetradores de grandes crimes políticos, o que não é de modo algum a mesma coisa. […] O fracasso dos empreendimentos de Hitler não significa que este fosse um idiota, e a amplitude de seus empreendimentos não significa que fosse um grande homem.
Diferentemente de uma leitura apenas referencial que se possa fazer da peça, Brecht não está preocupado em mostrar o mal-estar do fascismo e, sim, em trazê-lo à luz de uma compreensão mais profunda, contrária às “banalidades marxistas”, segundo as palavras de Arendt. Entender que o ainda presidente do Brasil é uma figura complexa da sociedade global parece bem mais perspicaz do que demonstrar estupefação a cada vez que ele rompe com o pacto de civilidade que ainda nos mantém humanos. É o próprio Brecht quem dará uma bela chave de leitura da peça em sua participação, em 1935, no Congresso de Escritores em Defesa da Cultura (registrada por Tercio Redondo no posfácio de Conversa de refugiados), seis anos, portanto, antes de ela ser escrita:
À advertência de que é bruto, o fascismo responde com a apologia da brutalidade. Acusado de ser fanático, responde com a apologia do fanatismo. Denunciado por ferir a razão, inicia solenemente o rito de sua condenação.
Com sua envolvente mistura de poemas, trechos de peças ou alusões a elas, canções e depoimentos, subsiste como moto-contínuo em O que nos mantém vivos uma delicada rede de estímulos políticos e impulsos poéticos, tecida pelo deslocamento e intercambiamento constantes de raciocínio lógico, insights e sensibilidade, sempre dependentes uns dos outros. Impossível não se irmanar ao espírito gregário da aventura – na qual a carroça leva a figura de Téspis a se confundir com a da Mãe Coragem –, que enceta o desejo de uma sociedade brasileira mais justa, mais feliz, mais humana, em que até os corações de tijolo sangrem. Desde 1973, Renato Borghi insiste em fazer com que Brecht esteja apto a conversar com os espectadores do aqui-agora e, desta vez – na companhia de artistas que jogam com ele em cena e o reverenciam ao mesmo tempo –, com aqueles que virão depois de nós.
Os mundos da arte, da educação e do pensamento crítico vivem assombrados pela tirania do capitalismo atual, que vê no futuro somente impossibilidade e ameaça, promovendo uma sensação de presente contínuo de onde emanam excitação e euforia incontestes a serviço do imediatismo da vida e da imediação do homem. Os mais variados, e muitas vezes insidiosos, dispositivos políticos, econômicos e sociais soam como verdades inquestionáveis, anunciando dia a dia a morte de mais uma cláusula pétrea da constituição de nossa subjetividade.
Como fazer, então, com que a consciência pública lute contra o processo de mortificação que vivemos e resista a ele? Como ingerir o antídoto da lucidez a fim de nos mantermos vivos? Bertolt Brecht, Cristiano Meirelles, Débora Duboc, Elcio Nogueira Seixas, Nath Calan, Renato Borghi e Rogério Tarifa nos mostram no Teatro Anchieta que “suportar a vida mesquinha e uniforme” e “renunciar aos grandes atos e mesmo à compaixão” não é propriamente viver.
O QUE NOS MANTÉM VIVOS
Sesc Consolação – Teatro Anchieta (280 lugares)
Rua Dr. Vila Nova, 245 – São Paulo
Sextas e sábados, às 20h; domingos, às 18h
Ingressos: R$ 40, R$ 20 e R$ 12
Duração: 180 minutos
Classificação: 14 anos
Até 17 de dezembro
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero, onde atualmente é diretor.