‘Sobre o nada’: as cidades e os modernismos

‘Sobre o nada’: as cidades e os modernismos

 

 

Em meio às revisões e aos debates sobre os modernismos, acredito que seria importante relembrar também algumas questões relacionadas à arquitetura e ao urbanismo. Isso porque, se o desafio do plano urbano, ou melhor, a própria ideia da cidade já se coloca em tensão, desde o início, com os processos de colonização de Portugal e Espanha, sendo deles indissociável, é no entanto no contexto das vanguardas, entre as décadas de 1930 e 1950, que haverá um reposicionamento do problema, à luz dos postulados e dos atores da cena moderna.
Intérpretes de distintas vertentes se debruçaram sobre a questão fundacional na América Latina. Em geral, esses olhares retrospectivos afirmam que, desde a conquista, o espaço latino-americano foi elaborado sobre um fundamento instável, frágil, quando não inexistente. Nesse quadro, a cidade, elemento decisivo para a concentração, exercício e continuidade do poder colonial, significava, antes de tudo, a realização de um importante pressuposto civilizatório em espaços que, num primeiro momento, pareciam se esquivar da compreensão dos invasores, mostrando-se ora edênicos, ora infernais, ora reais, ora imaginários, em todo caso espaços desqualificados pela violenta mentalidade dos conquistadores como “selvagens”, “vazios” de tradição, de fundação, de passado. Ou seja, para além do elementar dado material e das diferenças morfológicas adquiridas, cada cidade coincidia com a necessária criação ex nihilo de uma origem, isto é, com o estabelecimento de um núcleo mítico que deveria ser, daí então, criador de uma história e de uma cultura.
Não à toa, como mostrou José Luis Romero em América Latina: as cidades e as idéias (publicado em 1976, durante a ditadura argentina), as incipientes urbanizações da primeira época – que não raro começaram sendo fortificações – surgiram de “atos fundacionais” que obedeciam a um rito formal algo estrito. Misto de desígnio político e gesto simbólico, tal rito era amparado pelo poder religioso e a força armada, a cruz e a espada: arrancar um punhado de mato, bater com a espada três vezes contra o solo, desafiar quem porventura se opusesse à fundação, celebrar uma missa, entronizar uma imagem, redigir uma ata, estabelecer previsões, erigir no centro da praça um símbolo de justiça (como um pelourinho) – eis, em suma, alguns dos gestos fundacionais que deviam ser performados, a cada vez, diante do “vazio”. “Fundava-se sobre o nada”, escreve José Luis Romero. “Sobre uma natureza que se desconhecia, sobre uma sociedade que se aniquilava, sobre uma cultura que se dava por inexistente”.
É claro que foram significativas as diferenças entre os projetos coloniais de Portugal e Espanha; distintos, portanto, os modos de ocupação do território. Num marco ensaístico do movimento modernista, Sérgio Buarque de Holanda situou a questão. Publicado em 1936, Raízes do Brasil talvez seja mais lembrando pelas definições da cordialidade brasileira e do “fora do lugar” como nosso lugar mais próprio, numa leitura arborescente da cultura que dava sequência, com isso, a uma via aberta por Silvio Romero e José Veríssimo, e que seria revisitada por Gilberto Freyre, Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Ferreira Gullar, Mário Pedrosa, Alfredo Bosi, além de outros.
Seja como for, aqui interessa mais a tipologia proposta pelo autor para a diferenciação das empresas colonizadoras ibéricas. Essa tipologia diz respeito à importância das cidades e do urbanismo, como dispositivos de poder, em cada um dos respectivos projetos (ou, a rigor, na quase ausência de projeto, no caso português). Por meio das figuras do ladrilhador e do semeador, Sérgio Buarque enquadra, de um lado, o ordenado voluntarismo da ocupação espanhola e sua vocação abstratizante:

 

“Já à primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhes antes o acento voluntário da linha reta. […] E não é por acaso que ele impera decididamente em todas essas cidades espanholas, as primeiras cidades ‘abstratas’ que edificaram europeus em nosso continente”.

 

Em oposição ao decisivo rigor da planificação barroca – que encontraria lugar de destaque também em A cidade letrada, de Ángel Rama – Sérgio Buarque situa o notável realismo da acomodação portuguesa, longamente agarrada à costa e ainda próxima do urbanismo medieval:

 

“A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência […]. Pode-se acrescentar que tal convicção, longe de exprimir desapego ou desprezo por esta vida, se prende antes a um realismo fundamental, que renuncia a transfigurar a realidade por meio de imaginações delirantes ou códigos […]”.

 

O quadro nos permitiria dizer que abstratos são os espanhóis; realistas, os portugueses. Enquanto os espanhóis encontraram fundamento nas ideias, nos códigos capazes de conduzir um ordenamento autônomo das formas e dos fins, os portugueses se deixaram ficar na imitação agrária dos limites naturais, alheios, portanto, aos pressupostos construtivos, necessários para a concreção de uma realidade autônoma. Nesse sentido, os espanhóis viam as palavras; os portugueses, as coisas. Uns abstraíam, outros representavam. Ou, finalmente, remetendo a uma valoração modernista que faria escola: os espanhóis antecipavam a vanguarda; os portugueses, o kitsch.
O esquematismo não nos impede de retomar a questão. Trata-se da intensificação e do redimensionamento do problema fundacional, quando da sua reposição, no contexto das vanguardas internacionais e da sua diferenciação, na América Latina, pelos modernismos nacionais. Com efeito, também no contexto dos modernismos o “vazio” se fazia notar. Em Sérgio Buarque, a metáfora das raízes condensa bem o problema. Como um fundamento ausente, esse “vazio” exigiu uma suplementação que, de modo geral, entre as décadas de 1930 e 1950, aproximou os projetos nacionais, encontrando suporte no vetor construtivo que participa das vanguardas, notadamente da arquitetura, embora ele seja com frequência diminuído em razão dos aspectos disruptivos que são lidos nas obras de vários artistas e movimentos. “De fato” – escreveu Adrián Gorelik em Das vanguardas a Brasília, apontando o que apareceria como um impasse – “como falar em vanguarda se a principal tarefa que ela se auto-atribuiu na América Latina foi a de construção de uma tradição?”
Em outras palavras: se há uma definição “clássica” da vanguarda, diz Gorelik, que sustenta principalmente postulados negativos, relacionados à ruptura com a tradição, ao combate às instituições, à destruição da autonomia da arte, ao confronto com o público e com o gosto burguês, no Brasil, no México, na Argentina (etc.), diferentemente, caberá às vanguardas, sobretudo, o trabalho positivo, que encaminha a invenção a posteriori da origem, e com ela a identificação do nacional e o devir da sua cultura.
Encenado de modo dramático na literatura e nas artes visuais já década de 1920, esse trabalho seria modulado de maneira igualmente intensa na arquitetura e no urbanismo, domínios do principal agente vanguardista desde os anos 1930: o Estado intervencionista, financiador em larga escala da modernidade (simbólica) e da modernização (técnica) que, por via de regra, deveriam, no entanto, atender a um desígnio conservador, sustentando o status quo.
Mas mesmo além do agenciamento estatal esse vetor construtivo será sinalizado, de muitas maneiras, como por exemplo nas propostas da arte concreta que acompanhariam os itinerários dos artistas ligados a Bauhaus ou aos grupos Círculo e Quadrado e Abstração-Criação; entre eles, Torres Garcia. Propostas que ainda na década de 1930 ganhariam espaço na imprensa brasileira, com uma intervenção de Kandinsky – um texto intitulado, precisamente, “Arte concreta” – nas páginas do jornal carioca Dom Casmurro. E aqui valeria destacar: esse é o momento em que Le Corbusier – lido atentamente por Mário de Andrade e desde os anos 1920 em contato direto com o Brasil, por meio de Blaise Cendrars e de Paulo Prado – faz a sua segunda passagem pelo Rio de Janeiro (1936), da qual resultaria o plano para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, um dos marcos da arquitetura modernista no Brasil, que é levado adiante por Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer.
E ainda poderíamos considerar que, em torno da arte concreta e da abstração, entre o público e o privado, por via de legitimações de variadas ordens, desde o final da década de 1940 um projeto cultural internacionalista seria construído por nacionalismos latino-americanos, nos moldes de instituições norte-americanas, como o MoMA. Nesse cenário, Pietro Maria Bardi, Romero Brest, Tomás Maldonado, Max Bill, Niomar Muniz Sodré e Sergio Milliet seriam alguns dos protagonistas. No Brasil, a criação do MASP (1947) e a exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo, organizada por Léon Degand para a inauguração do MAM de São Paulo (1949), marcariam essa oficialização, junto com a primeira Bienal (1951) e o complexo do Ibirapuera.
Claro, oficialização não significa consenso: como frisa Gorelik, a revista Habitat, criada por Lina Bo Bardi, foi na década de 1950 um espaço para a crítica ao formalismo hegemônico da arquitetura moderna made in Brazil, então convertida em “estilo” e celebrada internacionalmente. Ou seja, uma definição em bloco da vanguarda será sem dúvida problemática e dificilmente escapará do que Gorelik chamou de “restrição historiográfica”, de ação tardia. Se examinarmos artistas e movimentos, na Europa como na América Latina, notaremos uma complexidade irredutível: embora opacas, as fotografias de família não escondem integrantes bastardos e outros agregados; assim, as genealogias são móveis, promíscuas; e os enredos das tramas biográficas, críticas e políticas, com contornos muitas vezes difusos, mostram-se parciais, contingentes e, em alguns casos, francamente em pugna.
Os movimentos do construtivismo e do neoplasticismo, por exemplo, escapariam ao acento destrutivo da definição negativa de vanguarda. E o mesmo valeria para artistas como Duchamp ou Miró, já que, em torno deles, dadaísmo e surrealismo assumem uma força propositiva incontestável. A partir disso, de maneira mais acertada, como propôs Gorelik, apoiado em Walter Benjamin, caberia compreender que, em seu tempo, as vanguardas participaram de uma dialética complexa cujo presente só pode ser bem avaliado quando o distendemos: desse modo podemos então compreender, juntos, como pólos de uma tensão fundamental, André Breton e Le Corbusier, ou então, se quisermos, Flávio de Carvalho e Gregori Warchavchik.
Diante do “vazio”, a arquitetura e o urbanismo assumiram o papel positivo que lhes cabe, de maneira que a construção de uma tradição pôde ser pensada como a tarefa modernista por excelência; uma tarefa que, aliada ao projeto construtivo do Estado, alimentou fatalismos e otimismos. Na ausência de um passado sólido, como na falta de boas raízes sustentando o amadurecimento orgânico das nossas cidades, estaríamos afinal “condenados ao moderno”, auspiciou Mário Pedrosa diante do titanismo técnico que se apresentava com a Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, espécie de linha de fuga das buscas vanguardistas e de singular amaneiramento das diretrizes racionalistas estabelecidas pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), dos quais participaram Le Corbusier, Walter Gropius e outros arquitetos proeminentes.
Mas notemos: a criação de Brasília repõe o monumental mito de que a arquitetura e o urbanismo modernos criariam, eles mesmos, uma sociedade nova, moderna. Assim, como num salto rumo ao passado, a formalização do plano modernista parece reafirmar o “vazio” e a busca da sua superação; pois entre o desígnio político e o gesto simbólico também a nova capital foi antes de tudo uma cidade abstrata, riscada no deserto da “paisagem agreste”, como se “sobre o nada”. A síntese é do próprio Lúcio Costa; está em seu Relatório do Plano Piloto, parte dos ritos e dos “atos fundacionais” de Brasília. Aí lemos: “Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”. A cidade nasceu desse “gesto primário”: “dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.

 

Artur de Vargas Giorgi
Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

 

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