Pessimismo e otimismo em tempos de fundamentalismo bélico
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I. Estado de guerra
Nas primeiras semanas do alastramento da covid-19, houve uma enorme expectativa em torno da seguinte questão, feita a todos os especialistas: como seria o mundo depois da pandemia?
Poucos, na ocasião, perceberam o disparate anacrônico: afinal, estávamos somente no início de um custoso processo. A verdadeira questão era a inversa: o que fazer durante um longo período de confinamento necessário. Contudo, as pessoas evitaram ter de se defrontar com essa tormentosa possibilidade, que, no entanto, confirmou-se real.
A resposta estava, justamente, em levar a contaminação a sério e instaurar um verdadeiro estado de guerra contra ela; isto é, mais uma das novas guerras do mundo contemporâneo.
Já se vivia numa guerra de informação digital perpetrada pelo embate de tendências ideológicas da mídia corporativa e alternativa. Outra guerra também já vigorava nos adeptos do mercado contra o Estado social, que se concretizava na violência onipresente em todas as periferias.
Em outra escala, a guerra do capitalismo extrativista contra a natureza causou, por vias nada indiretas, a pandemia, bem como o empobrecimento e o desmonte da saúde fez ressurgir doenças já combatidas.
A guerra de informação, ao atingir o estado pandêmico, por sua vez, fomentou os negacionistas, motivados pelo planalto, que foram diretamente responsáveis pelo aumento do número de casos graves e mortes. Daí a pertinência plurisignificativa de chamar a extrema-direita no poder de governo pandêmico.
II. Império da desigualdade
Uma guerra foi causando a outra, numa sobreposição crescente e infernal: guerra neoliberal, guerra ao meio ambiente, guerra do tráfico, violência policial, violência miliciana, guerra de informação e guerra pandêmica.
Agora, vivemos dois novos combates. Primeiro, desencadeou-se a guerra da Ucrânia, que é local, mas que se estende ao mundo todo como guerra econômica e atinge especialmente o Brasil, pelo fato da política de preços da Petrobrás, depois do impeachment, ter optado por depender do dólar. O aumento dos combustíveis, que acarreta o da inflação, promove um verdadeiro bombardeio contra os pobres.
Segundo, nesse ano de 2022, de fato, principiou a campanha eleitoral, que não se dá em condições normais, pois nela se decide a sobrevivência do frágil Estado democrático nacional. Na verdade, ela foi antecipada desde o início da gestão do governo, que instaurou todo um aparato de mobilização digital permanente de sua base. O agravamento da guerra de informação põe em jogo o direito fundamental do votante. Nesta eleição, o eleitor vai responder a uma pergunta decisiva: se quer sair da pandemia antidemocrática ou instaurá-la como vitoriosa contra o Estado de direito.
De qualquer modo, a generalização multifacetada da guerra permanente assola diariamente o cidadão como “o novo normal” neoliberal desde os anos 80, que, progressivamente, só vai invadindo e deteriorando, cada vez mais, diferentes patamares da sociedade. O neoliberalismo normaliza catástrofes com tanta eficiência que elas viram o novo padrão.
O que nos deixa perplexos é a adesão a essa cultura da violência. Cabe perguntar: o que leva tanta gente a acreditar nela? Não há dúvida de que são pessoas que sofreram e sofrem, de diferentes maneiras e níveis, o estado de guerra cotidiano. A mágica neofascista está em oferecer, como solução fácil para cada agressão sofrida, mais violência: armar a população, apoiar agressores, atacar coletivamente em rede, acirrar polarizações rentáveis a plataformas, enfim, glorificar a barbárie na era digital.
Num mundo em que é mais concebível, como disseram Fredric Jameson e Slavoj Žižek, imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, o insuportável desespero de um horizonte niilista insolúvel propicia a crença cega na fácil solução que vai reproduzir o problema. Por trás do fundamentalismo bélico não se desvela outra coisa senão niilismo civilizatório: o império da desigualdade.
III. Palavras falíveis
É nessa condição atual que podemos examinar, então, como se comportam duas categorias habitualmente muito usadas em entrevistas com pensadores: otimismo e pessimismo.
Normalmente, o jornalista demanda do intelectual uma espécie de habilidade prognóstica, que é a secularização da dimensão profética e com ela sempre se confunde: qual sua expectativa do futuro? Você é pessimista ou otimista?
Desde o surgimento da figura pública do intelectual, a questão é sempre feita com a confiança que o presente delega ao futuro. A escolha fatal entre pessimismo e otimismo se dá como o ponto final diante das angústias do presente sufocante. Por isso, responder a pergunta é cair, mais uma vez na história, no maniqueísmo da resposta imediata para a urgência da conjuntura.
Claro que o jornalista, representante do espectador, deseja ouvir do entrevistado que ele é otimista, acrescentando uma justificativa soteriológica. Pessimismo e otimismo são categorias expectantes sentimentais que criam uma disposição afetiva fundamental para a ação. A pergunta “você é pessimista ou otimista” vem sempre acompanhada, explícita ou implicitamente, da pergunta “o que fazer?”.
Trata-se de uma carência de orientação: o rebanho quer saber de seu pastor uma indicação para onde ir, afinal. A pergunta aparentemente inocente solicita do pensador precisamente aquilo que ele deveria recusar: apaziguar a súplica dos tutelados. O intelectual, aquele que se destacou no espaço público por não ser limitado pela obtusidade mediana, aquele que sabe traduzir grandes percursos acadêmicos complexos em uma linguagem compreensível, ainda que ao mesmo tempo desafiadora, provocante e surpreendente, é encarregado, portanto, de apontar caminhos.
Se, de um lado, ele deve recusar o apelo de tutela, por outro, a tarefa da filosofia política consiste em dar uma ideia de como transformar o mundo, isso desde Marx, pelo menos. A contradição está justamente em oferecer ao leitor alguma perspectiva de saída, mas que deve mantê-la em suspenso para, em vez de amparar o protegido, instigar tanto uma reflexão individual independente quanto uma solução vinda da ação e inteligência coletiva.
Essa secularização do evangelista pode, por conseguinte, ser respondida de muitas formas, com diferentes tipos de pessimismo e otimismo, com diferentes usos dessas palavras tão falíveis.
IV. Tipologia fracassada
É curioso como a questão do pessimismo versus otimismo delineou o tipo de comunicação dominante entre a filosofia e o espaço público moderno. O que mais se faz é classificar os filósofos em otimistas (metafísicos propositivos em geral) ou pessimistas (Voltaire, Schopenhauer, Cioran).
Só pode dar errado. Mas não é inútil apresentar uma pequena tipologia que já assume o seu fracasso de antemão.
Os ideólogos mais simplórios produzem uma espécie de auto-ajuda intelectual: qual disposição afetiva correta devemos ter para agir com ânimo bem justificado, em suma, um “otimismo automático”, nas palavras de Ernst Bloch. Tal otimismo é passivo, não quer transformar a realidade, apenas confirmar o existente como certo e bom. No passado, tal era a posição da resignação burguesa dominante, que podia se revestir de um humanismo intelectual contemplativo.
Hoje é bem diferente. Reacionários são ativistas do otimismo armamentista: o cidadão de bem deve se defender atacando o “vagabundo comunista”, geralmente visto como o negro pobre, mas também o gay, a feminista, o professor. Claro que o intelectual de centro-direita vai repudiar tal grosseria, mas não deixa de “compreender” e aprovar suas “razões”.
O pessimista absoluto vê no mundo um mal incurável, mas considera que qualquer tentativa de alteração só piora. Ele identifica na história moderna, basicamente, o grande infortúnio nos estragos de quem se esforçou por modificá-lo, e a melhora é obra dos realistas que souberam aceitar o inevitável manobrando com habilidade algo admissível.
O pessimista crítico não aceita o horror do mundo e gostaria de modificá-lo, sabe revelar a hipocrisia dominante, mas não acredita que qualquer mudança seja possível e pode até concordar com o pessimista absoluto, quando admite que tentativas de modificação redundam prejudiciais. É o lado conservador de um Schopenhauer ou um Borges. Uma variante politizada é aquele pessimista que está sempre agindo em prol da melhora social, por uma questão ética fundamental, mas não é conduzido por nenhuma fé redentora. Não é resignado nem messiânico.
O otimista encantado é aquele que acredita piamente nos seus valores de transformação e se considera um verdadeiro arauto do esclarecimento das massas. Ele crê saber perfeitamente qual o problema e a solução do mundo.
O otimismo crítico, por sua vez, foi muito bem caracterizado por Romain Rolland numa resenha de 1920, em que ele admira quem conjuga
“esta aliança íntima – que, a meu ver, constitui o verdadeiro homem – do pessimismo da inteligência que penetra toda a ilusão, e do otimismo da vontade […] que ri no combate, por cima do sofrimento, da dúvida, das máculas do nada: pois sua vida ardente é a negação da morte”.
Foi daí que Antonio Gramsci retirou o mote “pessimismo da razão, otimismo da vontade”, propagado no Brasil por Carlos Nelson Coutinho, de muita valia para a geração que viveu a ditadura de 1964 a 1985.
V. Pensar na contracorrente
Toda guerra é feita de pulsão destrutiva: pura negação.
Se hoje vivemos numa guerra geral permanente de todas as esferas, então habitamos no cerne de um inferno niilista que denega a si mesmo, pois a expressão de seu desespero é fundamentalista.
Para sobreviver nessa sopa vulcânica de hostilidade, vinda de todos os lados, anseia-se pela negação da negação: o salto dialético que encontra força na dificuldade, ânimo na animosidade, alento na morosidade.
Na contracorrente da cultura da violência, o pensamento, ainda e sempre, pode avistar muitas estrelas na escuridão das terras planas e dominadas.
Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.