Katia Maciel: “slide_____s” e um corpo de água capaz de dançar
No último dia 20 de outubro, uma quarta-feira, a professora, artista visual e poeta Katia Maciel dança uma linda canção da banda inglesa The Smiths, Ask, diante do trabalho Evil 27: Selma, de 2011, do artista norte-americano Tony Cokes, instalado no Pavilhão da Bienal de São Paulo. Sabe-se que este trabalho parte de um “boicote ao ônibus Montgomery, um dos marcos do movimento para os direitos civis nos EUA em meados dos anos 1950, originado pela recusa de uma jovem afro-americana, Rosa Parks, a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. No vídeo, Cokes apresenta o texto On Non-Visibility [Sobre a não visibilidade], do coletivo Our Literal Speed – O.L.S.: Muito provavelmente – conclui O.L.S. –, a não visibilidade produzirá a visibilidade mais revolucionária de todas, e a gente não vai vê-la chegando”. A canção da banda inglesa diz, em tradução livre, que “Se há algo que você gostaria de experimentar / Me pergunte, eu não vou dizer não, como poderia? / […] / A natureza é uma linguagem, você não consegue ler? / A natureza é uma linguagem, alguém pode ler? / Então me pergunte, pergunte, pergunte / Porque se não é amor / Então é a bomba, a bomba, a bomba / […]”. Sabe-se também que Rosa foi presa por se negar a ceder o assento ao homem.
Por outro lado, a cena de Katia dançando diante do trabalho de Cokes é encantadora. Ela recupera pequenos gestos e movimentos do percurso rítmico que essas bandas inglesas do pós-punk imprimiam sobre a juventude nos anos 1980 e 90 e desliza leve, em voo, na interfície de um salão inventado por ela, para ela e para quem mais chegar. É um baile às avessas que se figura num dia frio, aparentemente, porque ela veste calças, casaco, meias e sapatos escuros e ainda usa a máscara no rosto que nos protege de todo o mal, amém. É possível lembrar de Mark Peranson escrevendo sobre o cinema de Pedro Costa e dizendo do quanto podemos dividir o nosso triste mundo, este, o único que temos e que nós mesmos criamos, “entre as pessoas que gostam mesmo de música e as que ficam mais pobres”. Peranson relata que ouviu de Pedro Costa, algumas vezes que, antes de começar a pensar em cinema, ele gostava era de música. Nada como a inferência de anterioridade do The Clash ou da lindeza de Young Marble Giants nos filmes de Pedro Costa, tal como estes últimos, por exemplo, em Juventude em Marcha, ou seja, Colossal Youth.
Katia tem um percurso muito interessante, abrangente e aberto. E isto inclui uma estratégia intuitiva, logo, do corpo, um corpo capaz de dançar, o que certamente vem de artistas que lhe interessam tanto, como Letícia Parente (1930-1991) ou o professor de estudos da performance na NYU e poeta, o norte-americano Fred Moten (1962). Professora e pesquisadora da ECO, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com uma pesquisa que se move em torno de uma ideia de “cinema expandido” que comparece em trabalhos de artistas visuais desde Hélio Oiticica com os jogos de “um cinema palpável” até Solon Ribeiro com a remontagem física de fotogramas recortados. Em 2020 ela publica A ideia de cinema na arte contemporânea brasileira (Ed. Circuito), livro em que procura traçar um panorama atravessado por alguns trabalhos, pensamentos e artistas que se lançam a um prisma de experimentação da imagem. Antes, como exemplo dessa expansão de sentidos, organizou uma pequena série de leituras de poemas, feitas por mulheres, nos escombros do antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, em 2017, dentro da exposição A invenção da praia: cassino, sob a curadoria de Paula Alzugaray: noites impressionantemente fortes porque as leituras partiam de um buraco no chão e ricocheteavam nos restos de parede e teto que a velha construção ainda mantêm firmes. Em seguida, Katia organizou um livro, Alto Mar (7Letras), com os poemas que foram lidos ali, quase 30 mulheres, e uma pertinência de expansão de uma imagem recorrente, a linha do mar, a divisão reta e inventada para que se possa ler a terra, o horizonte, e a palavra mar, essa borda, esse desperdício de litoral e encontro entre água e areia.
Isso já diz muito da trajetória de Katia Maciel como artista visual. Ela montou uma série de trabalhos que parte exatamente dessa linha imaginada entre terra e água, basta uma reparação detalhada em algo do que ela fez. Coisas como o ready-made reconfigurado de Marcel Duchamp, The Bicycle Wheel (1913), em Rio Ready-Made (2006), um vídeo em loop em que se vê o monumento turístico-paisagístico da cidade do Rio de Janeiro, o Pão-de-Açúcar, através do giro infinito de uma roda de bicicleta; repare-se que o monumento praticamente não existe como experiência para uma imensa maioria da população da cidade; o trabalho Mareando (2007) que expõe uma suspensão entre figura e fundo, imobilidade e movimento imprevisto, hábito e acidente; ou, por fim, ainda como exemplo, Suspense (2013), duas árvores na floresta do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, dois pedaços de cordas e Katia usando o próprio corpo para redesenhar uma ideia de rede ou, sem forçar muito a barra, das máquinas de tortura da idade média: tripalium, termo que também deu origem ao nome e noção de “trabalho”, e balcão; em ambas se prendia pés e mãos da vítima que eram esticados até a agonia da dor e, antes da morte, quando esses membros muitas vezes eram arrancados do tronco.
Os livros de poemas de Katia conversam, assim, com toda a relação que ela tem com as artes visuais, com o cinema expandido, com a imagem e, principalmente, com a força que ela consegue lançar de seu corpo em direção também à construção da linha, como frase impressa, na superfície da página. Basta um poema que se espalha, linha única na página, de seu segundo livro, Repetir [+2 e Circuito, 2015]: “a vida rarefeita pelas escolhas que não fazemos”. E se esse é o sentido da imagem, para a imagem, com a imagem, como uma potência, um in-potens, uma rarefação da vida entre escolha e fazer, ou seja, outra vez, acidente e hábito, o traço da poesia de Katia é praticamente o de uma cinematografia invisível – afirmativas e perguntas – da paisagem entre corpo, mundo natural e vida artificial: Trailer (7Letras, 2017) e Plantio (7Letras, 2019). Neste último lê-se o poema “variações sobre o horizonte”, que indica, rápido, o jogo que vem: “horizonte não é uma linha não é curvo não é distância não é / terra não é céu não é mar // horizonte é linha curva da distância na terra do céu no mar”. Logo se vê o desamparo da anotação, tanto quanto o desamparo do corpo, num modo de ler que é o de um corpo de água que pode ser consumido e consumado a qualquer nano segundo e sem nenhuma circunstância de recuperação. É no limite da paisagem que Katia trabalha, pensa, imagina, projeta seus vídeos-instalação e, mais recentemente, tem escrito os seus textos-anotação-poema.
Neste ano publicou slide_____s (7Letras), com esse livro retoma o projeto da capa em cor única, agora rosa, vá saber se já previa encontrar-se com o trabalho de Tony Cokes, diante dele dançar Ask para Rosa Parks, fazer uma festa e prestar uma oração a qualquer deusa ou deus que só pode haver se também capaz de dançar. E mesmo que esse livro ainda traga a graça engenhosa do gesto emprenhado entre o ‘kitsch’, o ‘ready-made’, o chiste e a blague – como se pode ler em “harsay”: “ouvir dizer / prova quase / tudo / com nada” –, Katia agora provoca também um estudo cada vez mais intenso em direção à linha do poema com o poema, devorar o poema até que a rarefação que elabora da mancha de tinta impressa na página se recomponha com força: “palavra nenhuma fica no lugar”, “aos cortes / em cada objeto ao vivo”, “livros nem sempre alcançam a porta” e, principalmente, “toda arqueologia é feita de água”. E se é esse o vórtice, é porque o gesto de Katia Maciel já toca um lance em espiral, o que tende ao infinito do sentido, quando mais do que escrever, apenas, o poema enfrenta a dilação vertiginosa da palavra, da frase, agora numa inscrição da terra sem rio ou vento, inferno de uma arché desmesurada: inscrição e “rio seco” sem “milagres ou anúncios”. Importante lembrar do pequeno e forte ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, Vórtices, quando comenta acerca do “movimento arquetípico da água em espiral” e lembra Walter Benjamin em torno de uma ideia da origem, quando esta não é uma categoria puramente lógica, mas histórica.
Katia Maciel, agora, com este slide_____s, num outro deslocamento de previsão, parece perceber o a priori histórico, sem o esgotamento frágil de algum devir, de como e quando um ser pode se apresentar, arqueologicamente, nos extremos da água e da terra, como uma aventura nomeada e, enquanto nomeada, a que chama, convida e convoca. Num fragmento do poema rarefeito ela anota: “alguém disse? / alguém disse / nada? / talvez assim seja / oferecer o rosto / a sujeira nos olhos / a ventania / em toda a guerra / o amor é o vento”. Atingir um ponto de queda ou de pressão do movimento infinito da espiral – redemoinho, onda, correnteza, espuma etc. – quando no nome ainda não dizemos, nada. Tanto que Agamben comenta que poeta é quem imerge nesse vórtice em que tudo se torna de novo nome. Ou seja, anotar o poema como um pensamento esgarçado da imagem de “uma fotografia inexistente” e de que “no olho aéreo nada se move”. Por fim, noutro fragmento, agora do último poema do livro, “floresta”, “a natureza é uma linguagem”, Katia reabre o jogo, como um ritornelo, de um corpo de água capaz de dançar repetidas vezes – esforço leve e sibilino de vínculo – que salta de uma série diferida: “a água é escura / a terra é escura / a caça é escura / o ovo é escuro / o pé não sabe onde pisa / não sabe que é pé / não finca não solta / não dura não resta / oco o lodo / o fundo o mundo.”
Manoel Ricardo de Lima é professor de literatura, UNIRIO. Publicou O método da exaustão (Garupa, 2020), Avião de alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart e Mayra Redin), Falas Inacabadas (Tomo, 2000, com Elida Tessler), entre outros. Organizou recentemente Uma pausa na luta (Mórula, 2020) com a participação de 70 pessoas e juventude, alegria (Mórula, 2021, com Davi Pessoa).