Se o “modelo chileno” não é bom para o Chile por que seria bom para o Brasil?
Chilenos foram às ruas pela aprovação de uma nova Constituição e por mais direitos sociais (Foto: Telam)
Esta semana vimos que os chilenos foram em massa às urnas para dizer, por maioria de 78%, que querem uma nova Constituição, em lugar daquela feita durante a ditadura de Augusto Pinochet. Além de rejeitar a atual Constituição, decidiram que dentre os constituintes não estarão os atuais membros eleitos do Congresso, mas uma assembleia votada para isso e, ainda mais, com paridade entre homens e mulheres.
Naturalmente, regimes políticos e constituições precisam estar afinados. Nos países em que a democracia se perde e é substituída por algum tipo de autocracia – como aconteceu na Europa, primeiro, e na América Latina, depois, durante o século 20 – costuma-se tomar providências imediatas para constitucionalizar o novo regime. O inverso também se espera que ocorra, quando os países são repostos no caminho da democracia, e, portanto, precisam materializar na Carta Magna sistemas jurídicos liberal-democráticos, além de reinserir e ampliar a lista dos direitos fundamentais. O Brasil fez isso em 1988, a Colômbia em 1991, o Paraguai em1992, o Peru em 1993, Equador em 2008, Bolívia em 2009, dentre outros.
O Chile, de um certo modo, demorou para tomar essa estrada. Primeiro, porque a Constituição de Pinochet, autocrática e militarista, no que diz respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos políticos e civis, por outro lado reduzia o papel do Estado ao mínimo na Economia, como preconizavam os scholars de teoria econômica da Universidade de Chicago.
Conta, portanto, com o “selo The Economist” de Constituição bacana. Segundo, porque o Chile foi por muito tempo o melhor exemplo de uma economia capaz de gerar riqueza na América do Sul, com o PIB per capita e o IDH mais altos da região. Terceiro, porque este fator permitiu a formação de partidos de direita consideravelmente fortes e unidos, se não na defesa do entulho autocrático do ordenamento jurídico de Pinochet, certamente na resistência a qualquer alteração no aspecto antiestatista da sua Constituição.
Que o diga o socialista Ricardo Lagos, presidente entre 2000 e 2006, que foi bloqueado por uma direita unida quando tentou propor esta mesma consulta popular que Piñeda foi forçado a aceitar. Muito embora impedido de convocar uma Constituinte, Lagos alterou no Congresso nada menos que 58 pontos dos mais autoritários da Carta em vigor.
Mas por que, então, os chilenos ainda acharam necessário rejeitar a sua Constituição, e pagaram um preço tão alto em vidas, sangue e destruição nesta última onda de protestos, até que Sebastián Piñeda e parte da direita concordassem em convocar um plebiscito? E, sobretudo, o que isso tem a ver conosco?
No Brasil temos hoje a curiosa situação em que o jornalismo de referência – mesmo aquele que entre 2014 e o início de 2020 ainda achava que o PT fazia mais mal ao país e à democracia do que Temer, primeiro, e Bolsonaro, depois – cansou-se, enfim, do combo de incompetência, maldade, burrice, comportamento republicanamente inapropriado e potencial destrutivo de Bolsonaro e do bolsonarismo. Mas, por outro lado, continuou cultuando Paulo Guedes e o pauloguedismo, o braço armado antiestatista e contra direitos sociais do bolsonarismo.
A crença no pauloguedismo,
com efeito, parece ser uma
questão de fé mesmo para
jornalistas e editores
antibolsonaristas.
Tanto dos que se tornaram antibolsonaristas por princípio quanto os que foram levados a isso à base de chutes e humilhações. Não sei se a causa disto é o vistoso charme da palavra “liberal”, que se usa para dar um ar de moderno e de enturmado com o mundo do capitalismo avançado, por contraste com a nossa realidade de violências, misérias e classe política depravada e degradada. Ou se é uma sensibilidade de classe média brasileira que domina as redações, e que consiste basicamente em evitar olhar para baixo, onde está a miséria das nossas cidades e a vulnerabilidade da vida da maioria dos nossos concidadãos, e em olhar sempre para o alto, para a turma do camarote, do andar de cima, entre a Faria Lima e a Fisher Island. Só sei que os príncipes da redação são, para dizer o mínimo, complacentes com o pauloguedismo, a versão auriverde da Escola de Chicago, que preconiza a fórmula mágica segundo a qual quando o Estado for mínimo a riqueza de todos será máxima.
Só o resiliente pauloguedismo das redações para explicar a versão que prosperou esta semana de que os chilenos queriam apenas exorcizar Pinochet por meio de uma nova Constituição.
Mas isso é, rigorosamente, falso. Não se tratava simplesmente de se livrar da autocracia de Pinochet, pois disso em grande parte se encarregaram as quase 60 modificações constitucionais de Lagos. Aliás, não parece que a constitucionalização de direitos políticos e civis seja um problema por lá. Na verdade, os chilenos foram às ruas levar porrada da polícia e às urnas para votar no plebiscito a fim de se livrar do pauloguedismo, da cartilha de Chicago.
Os chilenos querem desesperadamente direitos sociais: direito a uma previdência, saúde e educação públicas. Simplesmente se fartaram daquilo que Paulo Guedes vende como “o modelo chileno” e votaram “rejeito” no plebiscito de domingo. Cansaram-se de viver mal e sem direitos sociais em um país com PIB e IDH altos. O antiestatismo chileno chegou ao limite, sem Previdência decente, sem Saúde ao alcance de todos, Educação pela hora da morte, o futuro rifado em uma sociedade privatizada.
Às vezes é urgente mudar Constituições para aumentar direitos políticos ou direitos civis, noutras vezes as pessoas simplesmente querem direitos sociais. Ao que parece, até a direita chilena pró-mercado que apoiou o “rejeito” achou que estava demais.
Uma vez que oito em cada dez chilenos de carne e osso rejeitaram de forma veemente o “modelo chileno” de Economia, o pauloguedismo do governo e das redações ficou, por assim dizer, pendurado na brocha. Aliás, depois do plebiscito do Chile, convenhamos que tentar vender o pauloguedismo é o mesmo que vender o comunismo em 1988 quando caía o Muro de Berlim. É como dizer que é um ótimo negócio comprar um carro que está saindo de linha exatamente quando os que o usavam estão fugindo dele.
A propósito, isso nada tem a ver com ser “liberal” no século 21. Ninguém precisa ser antiestatista nem inimigo de direitos sociais para ser liberal. Do mesmo jeito que ninguém precisa ser marxista ou anticapitalista para ser de esquerda. É simples assim. Não deixem que a ideologia embace tanto a sua visão.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)