Trajetória obstinada
Izabel Petraglia
“Eu diria que não sou dessas pessoas que
têm uma carreira, sou daquelas que têm uma vida.”
É essa ideia, manifesta no epílogo de Meu Caminho, que perpassa e integra o conjunto de 13 entrevistas concedidas por Edgar Morin à jornalista Djénane Kareh Tager no ano de 2008. Seu mais recente livro, publicado em julho no Brasil pela Bertrand Brasil, com 378 páginas, foi primorosamente traduzido por Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco.
Meu Caminho trata de traços e contornos de uma trajetória intensa e obstinada, de 89 anos, construída por Morin, cidadão do mundo e convicto humanista apaixonado pelo patrimônio planetário, considerando sua vida e obra, seus amores, críticas, dores, partilhas, lutas, esperanças.
As primeiras entrevistas remontam a sua origem, família, o amor e a perda da mãe aos 9 anos, o que lhe deixaria uma marca indelével na elaboração da epistemologia complexa. Apresenta o pai com suas peculiaridades idiossincráticas e a ausência de regras de conduta na infância que, mais tarde, lhe permitiria assumir suas próprias verdades. Esclarece sobre a guerra; seu estado de espírito de exaltação na Resistência francesa; sua participação e no Partido Comunista e depois a saída dele.
Morin revela também que o que o aproximou do marxismo, em sua juventude, foi a busca da articulação dos saberes e sua religação à política, e fala das carências que o distanciaram desse pensamento: a política em si mesma, a subjetividade e interioridade humanas. Explica a dupla identidade, destacando suas fontes culturais e inspirações para a incubação do pensamento complexo.
A seguir, o autor discorre sobre os primeiros livros e suas pesquisas, a partir de 1951, no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na França, com destaque para a antropologia do cinema e a sociologia do presente. A primeira é capaz de desvendar a mente humana e vice-versa, num movimento dialógico e recursivo de duplo fascínio entre real e imaginário. Já a segunda, inicialmente experimentada numa pequena comunidade da Bretanha, enfatiza dois aspectos fundamentais: interrogar um acontecimento imprevisível e conhecer uma realidade concreta. Nessa direção, fala ainda de outros estudos que realizou: sobre rumores surgidos, mas não comprovados, acerca de jovens judias, em Orleans, no fim da década de 1960, e o sociodiagnóstico estudantil de uma época, em maio de 1968, o que poderia indicar novos valores femininos e juvenis.
Limites, incertezas e possibilidades
Reflete sobre limites, incertezas e possibilidades do conhecimento, interferindo em problemas políticos essenciais da humanidade; coloca a discussão de importantes temas, tais como vida e morte, literatura, filosofia, cinema, ética, economia, política. Dá o devido valor à cultura de massas e propõe a reintegração das culturas científica e humanística. Crédulo nas possibilidades do improvável, diante dos combates, Morin engajou-se, invariavelmente, contra qualquer forma de ditadura e em defesa da dignidade, igualdade e emancipação dos povos oprimidos, como aconteceu na Guerra da Argélia, e participou ativamente da construção do universo sociopolítico, histórico e cultural de seu tempo.
Morin é autor de uma antropologia complexa, concepção que busca articular as diversas dimensões do ser humano. Na origem latina da palavra, complexus significa o que é tecido em conjunto. O desafio da complexidade é religar os conhecimentos dispersos, acolhendo as contradições, e assim o fez com a preparação dos seis volumes de O Método, cujo enfoque considera simultaneamente aspectos científicos, filosóficos e literários. Entende ainda que é preciso distinguir e unir as partes ao todo, contextualizando-o; tarefa necessária à educação que requer uma reforma do pensamento, simultânea à reforma do ensino para as novas gerações.
Com exemplos sensíveis, Morin fala de sua vida, morte e renascimentos. Convida-nos à reflexão do presente e do devir. Resiste à barbárie do mundo, ao mesmo tempo em que propaga esperança e ações concretas para o enfrentamento das crises, articulando, cotidianamente, amor, poesia, sabedoria, título de um de seus diversos livros. Aponta 14 máximas que estabeleceu para sua vida e conclui com o mandamento: “Renascer e renascer até a morte”.
Meu Caminho é leitura imprescindível para aqueles que acreditam que amor, solidariedade e responsabilidade são valores possíveis e necessários aos desígnios do planeta e da condição humana.
Meu Caminho
Edgar Morin
Trad.: Edgard A. Carvalho e Mariza P. Bosco
Bertrand Brasil
378 págs. – R$ 45