Corpo elétrico, manifesto contra a repressão moral
Kelner Macedo, Lucas Andrade e MC Linn da Quebrada em cena de 'Corpo elétrico' (Divulgação)
É alentador que, em tempos sombrios de ofensiva conservadora na educação e na cultura, ainda esteja em cartaz nos cinemas brasileiros Corpo elétrico, do diretor Marcelo Caetano.
A trama tem por eixo central os caminhos da subjetividade de Elias, um jovem da Paraíba que rompeu com a família ao assumir-se gay e que veio a São Paulo realizar o sonho de tornar-se um estilista.
De fato, ele conseguiu uma colocação em uma confecção de roupas no bairro do Bom Retiro. No entanto, seu cotidiano no trabalho tem menos glamour do que o mundo da moda lhe poderia prometer, ao menos em suas fantasias. Ele trabalha como assistente pessoal da estilista Bia que administra, ao lado de seu irmão, um negócio familiar com rotinas monótonas e extenuantes para seus empregados.
O ambiente de trabalho é frio e marcado pela superexploração. Trabalhadoras adoecem frequentemente em meio ao ritmo intenso da costura. Apesar das distâncias entre empregadores e empregados, estes forjam, no dia-a-dia, redes de cumplicidade e solidariedade que despertam certa consciência de classe, algo aparentemente tão raro nestes dias.
Em meio à dura e melancólica rotina profissional, duas são as válvulas de escape de Elias na cidade. A primeira delas são as festas e confraternizações feitas com colegas de trabalho, que acabam constituindo uma espécie de família afetiva em contraponto à família de sangue com quem o jovem teve que romper. Já a segunda são os frequentes encontros sexuais casuais com outros homens, nos quais Elias vai se descobrindo e se revelando.
Assim, seu movimento na vida e no filme oscila e conecta, insistentemente, dois mundos aparentemente apartados entre si: o do trabalho que busca desumanizá-lo e o das camas nas quais ele resgata algo da humanidade que lhe é subtraída diariamente. Suas relações sexuais, em geral mais casuais e fluídas, transitam livremente entre o ato e a palavra, entre intimidade do desejo e a proximidade da conversa.
Uma das maiores belezas do filme é justamente retratar, com leveza, como Elias constrói sua existência a partir das brechas escavadas por seu próprio corpo neste mundo. Apesar de todas estruturas sociais adversas com as quais se depara, ele não se prende ao passado do abandono pela família e tampouco projeta-se a um futuro rendido aos seus sonhos profissionais. Sua vida vai se tecendo das relações e encontros do próprio presente.
Esse cenário presente é marcado por corpos diversos que atravessam, a todo momento, os longos planos do filme. Pode-se afirmar que, pela primeira vez, no cinema brasileiro recente, um tributo à diversidade dos corpos e desejos que constituíram a nação emerge de modo tão sensível e representativo.
Com efeito, o filme desafia os padrões estritos de beleza que governam, de forma particularmente acentuada, o mundo gay masculino paulistano. São corpos considerados abjetos, de negros, morenos, não sarados, trans, migrantes africanos ou nordestinos, caras mais velhos. São corpos com suas próprias histórias.
De certo modo, Corpo elétrico consegue retratar as mudanças recentes de uma sociedade a partir de uma perspectiva interseccional bastante peculiar. Os laços que atravessam e vinculam ordem social e ordem sexual no Brasil de hoje são o pano de fundo do filme.
A convivência entre relações de trabalho essencialmente arcaicas (a despeito da aparência de modernas) e uma diversidade sexual e de gênero pulsante é o retrato perfeito do país hoje. Mas essa acomodação forçada entre tradição e novidade, característica da modernidade periférica brasileira, acaba escondendo algumas mecanismos da reprodução das violências.
Nesse sentido, o filme poderia ter dado maior densidade psicológica e profundidade em alguns dos conflitos que acabam sempre reconciliados e acomodados. A reação conservadora aos avanços do reconhecimento LGBT, que hoje é tão visível, parece esquecida no filme.
Trata-se, portanto, de uma representação algo romantizada do momento em que vivemos, sem deixar, contudo, de ser bastante real. O filme revela tanto quanto oculta a realidade atual. Isso porque é permeado por uma representação bem antiga de um Brasil cordial, em que a intimidade prevalece sobre o distanciamento e a acomodação sobre o conflito.
De qualquer modo, Corpo elétrico é necessário nos tempos em que vivemos. O filme vai de encontro ao coro da “moral e dos bons costumes”, que já está se convertendo em censura às artes e em governo de nossos desejos. Por isso mesmo, pode-se dizer que o filme assume, na atual conjuntura, o caráter de um manifesto contra a repressão moral.
(1) Comentário
Os efeitos dos avanços LGBT’s ainda são pouco do muito que virá se houver tempo. Só o fato do filme ainda estar sendo exibido já representa esse pouco conquistado; a luta continua.