O homem-cinema

O homem-cinema
François Truffaut (Foto: Jack de Nijs via Wiki Commons)

 

O crítico, historiador e biógrafo de François Truffaut, Antoine de Baecque, fala sobre a vida e obra do cineasta que encarnou o cinema

CULT – Truffaut teve uma “infância clandestina”, foi criado pela avó e rejeitado pela própria mãe – e sabe-se que esse período de sua vida teve um impacto enorme em sua obra cinematográfica. O que o senhor pode dizer sobre a relação entre a vida e a obra de Truffaut?

Antoine de Baecque – Truffaut encarnou o cinema: sua vida se fez unicamente de cinema, e sua biografia, neste sentido, revela como ela foi toda posta em seus filmes. Cada um dos vinte e um filmes de Truffaut foi cunhado na própria matéria biográfica, que vai desde sua infância, da qual tantos de seus filmes carregam traços – às vezes violentos e humilhantes.

Quando menino, Truffaut tornou-se uma espécie de “militante do cinema”, costumava passar a maior parte do tempo estudando, lendo e assistindo a filmes da época. O editor André Bazin foi um tipo de pai espiritual para ele. Como era essa relação?

Bazin tinha um espírito aberto, tolerante, que adorava compreender os motivos de seus adversários, fossem eles críticos, teóricos, políticos. Mas ele sabia igualmente pôr-se em combate: sua escrita é polêmica, sem concessões; ele nunca conforma suas ideias, seja perante o stalinista Georges Sadoul, seja perante a jovem direita hussarda da Cahiers du Cinéma. Ao mesmo tempo, isso não o impediu de ser amigo dos comunistas, nem de ser o pai espiritual de Truffaut, saudando seus companheiros Godard, Rivette e Chabrol nas páginas da Cahiers du Cinéma, da qual foi também chefe de redação, com Jacques Doniol-Valcroze. Bazin não é somente um grande crítico, é um democrata de combate.

Ao longo dos anos 1950, a revista Cahiers du Cinéma começou a publicar artigos de jovens críticos que logo passaram a assumir o posto de diretores de cinema: Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer, Claude Chabrol e, claro, François Truffaut. Era o começo da Nouvelle Vague. O que reuniu esses diretores?

Os cineastas da Nouvelle Vague intuíram que o cinema podia por vezes pertencer a todos e a cada um, de forma íntima e pessoal. Esse cinema não era uma arte para um círculo restrito, uma experiência vanguardista para os happy few: para Truffaut, assim como para Godard ou Rohmer, tratava-se de trabalhar dentro do sistema do cinema comercial, no intuito de alcançar inúmeros espectadores. Ao mesmo tempo, isso não impedia de contar histórias pessoais, de pegar uma câmera para rodar um filme sem mais ninguém, independente de sua idade, na rua, seguindo um método revolucionário, com os técnicos e os atores perto de si. A Nouvelle Vague queria unir o diário íntimo e a cultura popular e, de uma certa maneira, conseguiu.

Fica claro que, na época, a maioria dos intelectuais franceses tinha algum tipo de relação com o cinema. Por que razão isso aconteceu?

Ser cinéfilo, na França, não é apenas escolher a melhor poltrona nas três primeiras fileiras de uma sala de cinema; ser crítico não é apenas ver muitos filmes sem pagar pelo ingresso. Ainda bem! Ser intelectual não é desprezar o cinema por ser uma arte comercial. A cinefilia, a crítica e a reflexão sobre o cinema conseguiram legitimá-lo como uma arte do século 20, situá-lo na cultura maior. Foi Godard quem afirmou: “Colocamos Hitchcock na história da arte…”. Se o cinema é arte do século, é porque os cinéfilos viram ali, com seus próprios olhos, por vezes o grande romance do século, mas também o quadro, a peça de teatro, a arquitetura. O cinema foi para eles a única síntese possível de todas as outras artes. Era rico em potencialidades dessas diferentes áreas e ainda ia além: ele as realizava. O cinema se tornou, visto pelos cinéfilos e escrito pelos críticos, melhor que a arquitetura, a literatura, a pintura, melhor que o romance ou a música. De uma certa maneira, conseguiu encontrar a “grande arte por excelência”, aquela que diz direta e simplesmente a beleza do mundo – a arte poética. O cinema é a poesia do século 20. Esperamos que, da mesma forma, será – e eu acredito que sim – a do século 21.

No livro Cinefilia (lançado no Brasil pela Cosac Naify em 2011), o senhor diz que a vanguarda cinematográfica geralmente começa com um filme, mas que o que marcou o início da Nouvelle Vague foi o artigo de Truffaut “Uma certa tendência do cinema francês”, publicado na Cahiers em 1954. O que fez desse texto a pedra fundamental do movimento?

Truffaut foi o crítico mais importante dos anos 1950, o mais influente, o primeiro astro da crítica na cena cinéfila moderna. Godard ainda era um crítico entre outros, situado num lugar original do espaço cinéfilo: só tomaríamos consciência do interesse de seus textos mais tarde, depois dele ter se tornado o cineasta que conhecemos hoje. Truffaut foi lido, temido, admirado, detestado, no momento imediato da publicação de seus textos na Cahiers du Cinéma e em Arts: ele foi o tribuno crítico de seu tempo.

Qual foi a importância de Truffaut para a Nouvelle Vague?

Ele foi um jovem brilhante e ávido de devorar tudo: o cinema foi toda a sua vida e ele deu muito ao cinema, com uma generosidade louca. Sua vida é um romance, frequentemente triste e melodramático no início, nutrido de cinefilia na juventude e posteriormente cheio de energia e audácia: literalmente, ele tomou de assalto o cinema francês. Ele parte para a conquista dos autores que admira, está convencido de que obterá êxito fazendo filmes. E assim se dá! Hitchcock, Rossellini, Renoir, ficam fascinados e seduzidos por esse jovem de apenas vinte e poucos anos e ele triunfa no festival de Cannes com seu primeiro filme, Os incompreendidos (Les 400 coups), em 1959, aos vinte e sete anos… Por outro lado, a luz tem uma face sombria: o jovem Truffaut está disposto a tudo para saciar sua ambição: ele rouba, manipula, mente, é injusto. É uma estratégia da imprensa e da crítica, e acredito não ter lido textos mais violentos contra filmes, às vezes bons filmes, do que os seus.

O que mais o impressiona em François Truffaut?

Conhecê-lo melhor e conhecer o seu íntimo, por meio dos documentos, arquivos e filmes revistos, mudou minha visão sobre ele. Eu via em Truffaut o fetichista obcecado por sua própria existência, o homem selvagem ocultado pelo símbolo polido clássico do cinema francês. Graças ao trabalho em sua biografia, descobri um ser mais secreto, internamente impetuoso, às vezes trazido à tona por sua paixão pelo cinema. Muito diferente, enfim, do bom diretor artesão que se põe em cena em A noite americana, sem dúvida um de seus piores filmes, pois ali, de certa forma, ele engana a si mesmo ao apresentar sua face mais modesta e mais positiva. Truffaut era o contrário daquilo: ele tinha uma ambição imensa pelo cinema, mas era regido por pulsões destrutivas e sombrias.

O senhor tem um filme favorito de Truffaut?

Difícil, difícil! São alguns filmes, quase órfãos ou esquecidos, que me são caros na obra de Truffaut. Mas se precisar escolher um, será A sereia do Mississípi. Frequentemente desprezado, fracasso esmagador quando foi lançado, em 1969. No entanto, nele o amor é verdadeiramente dilacerante, traumático, e indispensável à existência. É aí que Truffaut inventa esta frase que diz tudo sobre seu cinema e sobre a vida em geral: “Amar-te é ao mesmo tempo uma alegria e um sofrimento…”. Quando, além disso, é Catherine Deneuve quem a murmura para Jean-Paul Belmondo, temos aqui uma das mais belas coisas filmadas no cinema.

O senhor tinha pouco mais de vinte anos quando da morte de Truffaut. Chegou a conhecê-lo?

Nunca o conheci em vida. É claro que vi seus filmes, como todo jovem cinéfilo no mundo. Mas sua morte foi decisiva para mim: 21 de outubro de 1984, eu então escrevi um texto que enviei despretensiosamente para a Cahiers, a caixa postal truffautiana óbvia. Esse texto foi publicado logo em seguida. Foi assim que “entrei” para a Cahiers, graças a Truffaut, de certa forma…

Nos anos 1990, o senhor editou a Cahiers du cinéma. Como foi essa experiência?

Entre o jovem crítico da Cahiers du cinema que eu era, formando-se na cinefilia aos vinte anos, e os anos 1990, dez anos mais tarde, decorre toda uma formação, toda uma reflexão sobre o que é a crítica. Isso se dá por uma espécie de fusão entre meus dois principais interesses, a história e a crítica. A relação que tivemos na época com essa história foi muito particular e mítica, foi a Nouvelle Vague, mas foi também alguma coisa mais distante. A Cahiers de “antes” quase não era lida, acessível somente aos especialistas, em bibliotecas. Quando começa a edição dos primeiros números dos anos 1950 em reimpressões, no final dos anos 1980, a relação da nova geração com os fundadores foi de ordem puramente lendária. Não foi de forma alguma uma relação de saber ligada à leitura e ao conhecimento, nem de textos ou mesmo de filmes, que ainda eram muito menos acessíveis do que hoje, com edições em DVD. Por meio da Histoire des Cahiers du Cinéma, publicada em 1991, estabeleci uma relação de releitura, de pesquisa, de contextualização, ou simplesmente de história, com esse período da Nouvelle Vague e das primeiras Cahiers du Cinéma.

A propósito, o rosto da personagem Antoine Doinel, protagonista de Os incompreendidos, estampa a capa da edição brasileira de Cinefilia, seu mais recente livro publicado no Brasil. Esse personagem de Truffaut é, de algum modo, especial para o senhor?

É meu personagem-fetiche na história do cinema, e Jean-Pierre Léaud é meu ator preferido… Estou verdadeiramente muito contente que ele esteja na capa desse livro.

Trinta anos após sua morte, qual é o legado de Truffaut para o cinema moderno?

Penso que Truffaut continua importante tanto por sua vida, sua biografia tão instigante, quanto por seus filmes. Seu legado para o cinema é sua própria vida, enquanto que Godard é evidentemente o grande revolucionário da forma. O primeiro é o homem-cinema, o segundo é o cineasta mais importante do mundo. 

Tradução Paulo Ricardo Alves

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