De Gado e Homens – sobre o romance de Ana Paula Maia
Há meses queria escrever algo sobre De Gado e Homens, arrependida de não ter lido antes, quando foi lançado em 2013 pela Record. Coisas acontecem e os livros – quem sabe, como a vida… – ficam nessa margem que é a cabeceira da cama, mesmo que tenhamos gostado deles. Lemos, guardamos os livros que amamos nas estantes, mas há livros que não cabem nelas, penso agora. Há livros que ameaçam derrubar as prateleiras. Como a vida, assim, quando ela pesa.
Nesse livro de Ana Paula Maia, a história é de gado e homens e seu convívio no matadouro, lugar onde simplesmente “se mata”. Tudo é alegoria. Gado é metáfora de homem e vice-versa. Um desses homens, Edgar Wilson, ocupa o papel de protagonista. Central na narrativa é o seu trabalho: o de atordoador. Matar é, para esta personagem, a prática essencial na qual a compaixão ou a falta dela não estão em jogo. Atordoar o animal que vai morrer é algo que facilita a sua morte. Edgar Wilson praticamente hipnotiza os bichos, enquanto se vê em cada animal que abate. Acreditando que o animal tem alma, sabe que, embora tudo acabe ali, não é ali que tudo acaba.
Sabemos pouco sobre frigoríficos. Quem vê a mera carne em seu prato não pensa no sofrimento dos animais. Quem pensa no sofrimento dos animais nem sempre lembra da miséria dos homens.
O livro fala dessa miséria. Da miséria da civilização que não pode controlar a própria sombra, da miséria dos homens que, trabalhando pelo sistema econômico, político, social, operam na total falta de sentido. Por que matam? Pergunta que só se responde tendo em vista a pergunta acerca de por que vivem. Viver e morrer não são, certamente, fatos simplesmente paralelos, são praticamente o mesmo.
Da autora pode-se dizer que escreve com facas. E não usa truques. É direta e sem piedade. Deve ter observado os homens no frigorífico, entrado em sua alma fria, sentido cada um daqueles pensamentos… é assim que podem pensar os que não conhecem o poder da imaginação criadora. A ficção de Ana Paula Maia nos atordoa com o olho de vidro de Bronco Gil, com o dilema das vacas israelenses e das libanesas, com a carne das vacas mortas que, sem terem sido abatidas, se dá de comer aos pobres. Por fim, com os abortos dos animais e com seu suicídio, mistério que dá ao livro o tom de fantasmagoria, essa que combina bem com a vida humana, imagem no espelho do Rio das Moscas, rio de sangue onde o humano e animal encontram seu lugar comum.
Assim é que Ana Paula Maia criou, como esse rio, um romance que nos serve de espelho. A moldura reta nos permite atravessar e chegar à outra margem, mesmo que, como leitores, não possamos mais ficar impunes.