Por uma ética mundial da esperança

Por uma ética mundial da esperança
Frei Carlos Josaphat em 2002 (Foto: Atospress)

 

Há 65 anos era ordenado padre da Igreja Católica o frei dominicano Carlos Josaphat, hoje com 89 anos de idade. Em maio, ele publicou o livro Ética Mundial (Editora Vozes), sempre interessado no diálogo da fé cristã com a cultura contemporânea e testemunha da clareza de pensamento que é sua característica. Tornou-se conhecido, desde os anos 1960, por seu engajamento político e social.

Por ocasião do golpe militar, foi “convidado” a sair do país. Doutorou-se, então, em 1965, em Paris, com uma tese sobre a ética da comunicação social. Tornou-se professor da Universidade de Friburgo, Suíça, onde hoje é professor emérito.

Convidado pela CULT para falar de seu pensamento e analisar a atual crise ética vivida pela Igreja, Frei Carlos recebeu-nos com muita simpatia, abrindo fecundos horizontes de reflexão sobre a estrutura eclesiástica, a moral sexual cristã, o projeto de ética mundial, entre outros temas.

CULT – Para começar com um tema da ordem do dia, o senhor considera que a Igreja está em crise, principalmente por causa dos escândalos ligados à pedofilia?

Frei Carlos Josaphat – A sexualidade é um problema sério para a Igreja, que vem se arrastando há séculos. Ela nunca chegou a uma posição satisfatória. Certas correntes antigas de pensamento, essencialmente pessimistas, acentuavam o caráter racional do homem, sem dar suficiente atenção ao aspecto passional. A Igreja ocidental, sob essa influência, nunca chegou ao entrelaçamento feliz entre os instintos e a razão. Por isso, sempre tentou controlar a sexualidade, não a ajudando a desabrochar. Nessa linha, adotou a obrigação do celibato para os candidatos ao sacerdócio. Em vez de apresentar o ideal do celibato como um caminho de realização para o qual apenas alguns são chamados, ela o define como condição para o exercício do ministério. Isso me parece pouco razoável, pois o celibato obrigatório acarreta, como efeito colateral, uma margem bastante grande de desvios na prática da sexualidade. Porém, não podemos esquecer que a problemática da pedofilia é acentuada excessivamente pela mídia e pela exploração econômica dos pedófilos. Isso tudo faz surgir e crescer uma crise que naturalmente vai durar ainda certo tempo, mas que, no fundo, será benéfica, pois levará a uma reflexão sobre a sexualidade em sua integralidade.

Então o senhor associa a pedofilia ao celibato obrigatório? Mas há pedofilia praticada mesmo por pessoas casadas…

Infelizmente, pedofilia há em toda parte, entre solteiros ou casados. E o celibato não é a causa da pedofilia, mas a pedofilia é um dos efeitos colaterais do celibato. Em todo caso, o celibato é uma lei eclesiástica inteiramente reformável. Acredito que a Igreja tem todas as condições para revê-lo e resgatá-lo em seu valor genuinamente evangélico.

A mídia tem dito que a Igreja demorou demais para tornar públicos os processos de pedofilia. O senhor acha que a Igreja tem a obrigação de tornar públicos esses processos?

A Igreja tem a obrigação de reconhecer os erros de seus ministros e preocupar-se com o bem dos envolvidos, seja das vítimas, seja dos próprios culpados. Mas essa solução pode ser feita de maneira discreta, pois fazer justiça não significa expor o réu. O que desnorteia a opinião pública é que a mídia se interessa mais pelo que é escandaloso. Em vez de mostrar o trabalho positivo de inúmeros cristãos, ela prefere o que não é edificante…

A crise desencadeada pelos crimes de pedofilia pode provocar, a longo prazo, uma revisão dos problemas tradicionais, como o uso dos contraceptivos e preservativos?

Não acredito que haja um progresso imediato, pois são posições que a Igreja tomou e confirmou durante muito tempo. Mas também estou convicto de que o Concílio Vaticano II (1961-1965) abriu uma porta muito iluminada para o tema da contracepção, quando não opôs método natural e método artificial. Abriu-se um caminho ao dizer-se que só os casais tinham autoridade para decidir de forma definitiva sobre o melhor método contraceptivo, o melhor número de filhos etc.

O Concílio, assim, respeitava o caráter pessoal do ser humano e do casal. Infelizmente, o papa Paulo VI reservou para si o direito de proclamar o método natural como o melhor método contraceptivo. Creio que ele teve a melhor das intenções, e sua decisão teve aspectos positivos, pois enfatiza que a pessoa não deve escravizar-se pelos instintos, mas acredito que, hoje, sobretudo depois de tantas reflexões a respeito do que são o natural e o artificial, haveria condições para uma revisão. A Igreja poderia reconhecer suas motivações passadas e a natureza transitória de algumas de suas declarações, o que lhe permitiria rever suas posições na atualidade. É possível, desejável e necessário que se faça essa revisão. Mas, que se fará e quando se fará, essa é outra questão.

A visita do papa Bento XVI à África tornou-se polêmica depois dos discursos em que ele condenou o uso do preservativo, num continente assolado pela aids. Ao mesmo tempo, ele é conhecido como um teólogo de primeira grandeza para o cristianismo contemporâneo. O senhor vê um retrocesso em suas posições morais ou haveria alguma outra explicação?

Nada de exageros. O papa não é ele mesmo um especialista em moral. Além disso, seu raio de experiência, como pastor, antes do supremo pontificado, vai da Itália à Alemanha. Ele não tinha conhecimento dos complexos problemas da África, da Ásia, da América Latina. Tenho grande estima por ele, mas não o incenso. A questão, porém, não é só essa. Ele quer guardar coerência com o magistério anterior da Igreja. Nessa coerência, se se fala que o casal não pode utilizar um meio “artificial” de contracepção, é claro que o papa não vai aceitar o uso do preservativo. Na minha opinião, e ficando também no interior da doutrina da Igreja, o papa poderia ter falado do preservativo como um mal menor, ou seja, a prática de um mal (aqui, no caso, o uso do preservativo, considerado um mal pela doutrina), pois essa tolerância evita a prática de um mal maior, como seria o contágio generalizado.

E a comunhão dos recasados?

Comecemos por reconhecer que a humanidade está numa grave crise no que toca à prática e à compreensão do casamento. A prova disso é o modo como se procura resolver juridicamente situações de problema familiar, sem levar em conta a natureza da família. Por exemplo, há um problema quando se pensa que as crises familiares se resolvem apenas em termos do direito dos esposos e dos filhos. É bom que haja uma solução pelo direito, mas a humanidade precisa fazer uma revisão. Quando as pessoas decidem se casar, devem levar em conta o bem dos cônjuges e dos filhos.

A Igreja tem razão quando insiste no valor do matrimônio para a humanidade. Mas, atualmente, com essa visão equivocada e com a erotização massiva que atinge as pessoas do mundo todo, são muito comuns a separação e o novo casamento. No caso de o novo casamento ser harmônico e maduro, a Igreja não pode tratar os cônjuges como cristãos de segunda categoria. A comunidade cristã deveria ser tão bem formada que chegasse a reconhecer as particularidades da história de cada um dos seus membros, sem excluir os recasados. Não é uma questão para o clero decidir sozinho, mas para a comunidade, em união com seus pastores.

O senhor insiste na importância do Concílio Vaticano II como um concílio de progresso teológico, moral etc. Mas justamente o fato de ele ter se preocupado com uma atualização da Igreja não fez com que ele falasse mais da Igreja e menos de Deus? Deus não deveria ser a preocupação central da religião?

A novidade do Concílio Vaticano II é que ele não quis ser rígido e enfatizar a disciplina. Para comparar com o Concílio de Trento (1545-1563), podemos dizer que Trento foi muito mais disciplinar, confessional, enquanto o Vaticano II chega a dizer que a Igreja tem de aprender com o mundo (em termos de governo democrático etc.). Foi um concílio muito aberto, que buscou sintonia com o mundo moderno. Onde acho que sua pergunta tem razão é que, na aplicação do Concílio, a linha foi de retorno à disciplina. Para mim, um avanço enorme virá no dia em que a cúria romana for substituída por uma cúria do episcopado mundial com o papa, favorecendo um diálogo entre os leigos e o governo da Igreja. O Concílio punha o acento no caráter mais espiritual, mais místico da Igreja, afirmando que todo cristão é chamado à santidade.

Mas não seria preciso falar menos da Igreja e mais de Deus?

Justamente. Eu acredito que hoje as religiões têm futuro na medida em que são menos confessionais e mais abertas aos problemas espirituais e culturais da humanidade. Isso vale para todas elas, o budismo, o hinduísmo, os maometanos, os judeus e muito particularmente para os cristãos e católicos. Deus é o Deus de todos, é o amor universal.

Falando de futuro, e voltando a falar da Igreja, o senhor tem alguma intuição específica?

Primeiramente, acho que a Igreja está marchando bem, sobretudo quando valoriza os muitos movimentos leigos. Por exemplo, na política, vale muito, hoje em dia, a atuação dos leigos no sentido de combater a corrupção. A CNBB entrou nessa luta depois que os leigos já trabalhavam. Há um esforço enorme para promover os valores humanos, buscar a felicidade para as crianças, as pessoas esquecidas, os pobres etc. Isso cresce cada vez mais, embora fique escondido, pois a mídia não se interessa em mostrar. Por outro lado, há falhas na Igreja que devem ser corrigidas também no seu governo. O fato de eleger um papa como João XXIII (1958-1963), por exemplo, faz avançar as coisas, mas, depois, escolhendo um papa conservador, embora sempre haja amadurecimento, não há mudanças de estrutura. Mas essas mudanças são necessárias, difíceis, lentas. Requer-se formação, crescimento geral, e isso demanda tempo. Tenho esperança, pois vamos fazendo o que nos é possível hoje e aguardando um futuro de inovação.

Sua visão é otimista, não apenas em relação à Igreja Católica, mas com todas as religiões. Essa esperança se estende à história em geral?

A história não é um progresso do bem que sempre triunfa. Ela comporta uma ambiguidade, pois o bem e o mal avançam e recuam. Hoje o mal está bastante organizado, tem grande eficácia. É por isso que precisamos de uma ética mundial de esperança para a humanidade. E, embora o mal continue presente, é preciso ver que ele aparece mais do que o bem. Mas isso não quer dizer que o bem também não aja. Ele é mais discreto. Os fóruns sociais, por exemplo, são momentos de esperanças. Esperanças no plural, pois ainda não se chegou a pontos nos quais devemos esperar juntos. Seria preciso voltar a valorizar a ONU, sobretudo para resolver problemas urgentes, como o do ar, da água, do clima, da terra etc., mas sem interferência direta na autonomia de cada país. Devem-se estabelecer princípios gerais. A humanidade, nem que seja por medo, vai progredir na compreensão mútua e na busca de solução para os problemas universais.

Como pensar um projeto de ética mundial?

Esse projeto não seria um conjunto de regras (obrigar a fazer isso ou aquilo); seria mais um acordo. No direito, foi possível haver uma compreensão universal, a ponto de chegar à Declaração de 1948, embora ela não seja inteiramente respeitada, sobretudo no que se refere aos direitos sociais. A mentalidade norte-americana, infelizmente, é muito influente, e não enfatiza os direitos de todos, mas a liberdade individual para que cada um busque ser feliz.

Por isso, não se fala da garantia de direitos fundamentais de todos os cidadãos. Um projeto de ética mundial seria, antes de tudo, um entendimento sobre os grandes valores e direitos fundamentais, para, então, chegar a estratégias de promoção desses valores e direitos. Um exemplo dessas estratégias seriam campanhas para fazer cobranças aos políticos. Se isso ocorresse em alguns países, a população poderia perguntar, por exemplo: “Por que gastar tanto com o exército, em vez de criar condições para o diálogo entre os povos?”. Temo que a humanidade só pense nisso quando estiver em desespero.

E onde aparece Deus nesse contexto?

Respondo com um fato singelo que me ocorreu há quatro ou cinco anos. Fui convidado para dar uma conferência sobre psicanálise e mística, para psicanalistas. Alguns dias depois, recebi um telefonema de um senhor, pedindo-me para conversar sobre o tema. Quando nos encontramos, ele me pediu para falar durante 15 ou 20 minutos sobre quem é Deus para mim. Ele estava lá, de olhos fechados, apenas escutando. Terminado esse tempo, ele se levantou comovido, me cumprimentou e foi embora.

Depois de uma semana, telefonou novamente, confidenciando: “Eu era católico na infância e depois deixei a fé, mas agora resolvi que Deus é mesmo o caminho da minha vida!”. Ele certamente teve seus motivos para deixar Deus de lado, e muitas vezes a responsabilidade é da própria religião. Por isso, acho muito difícil que uma religião fale de Deus como convém. Hoje, há muita religião e muita ausência de Deus. A humanidade só pode ter mais sentido de Deus na medida em que for mais autêntica e mais responsável.

Com relação ao pensamento filosófico contemporâneo, o senhor vê futuro para a questão de Deus?

Para mim, em filosofia, o filósofo mais instigante a esse respeito é Emmanuel Lévinas (1906-1995). Segui muitos de seus cursos e quase diria que habito o conjunto de suas obras. Pude observar também como ele se mantém em afinidade com a fenomenologia, por um lado, e com o profetismo bíblico, por outro. Para ele, não há ideia capaz de dar uma noção de Deus. Mas, para além de todo conceito, há uma tendência, no íntimo humano, do finito para o infinito, para a transcendência divina. Acredito que essa filosofia é capaz de levar a humanidade ao autêntico sentido do divino. Acredito até que o pensamento dos filósofos que divulgaram o ateísmo da responsabilidade, como Sartre, por exemplo, se for bem prolongado, pode ser um caminho para o reconhecimento de Deus. Para mim, o ateísmo que deve ser temido é a humanidade rasteira, buscando a felicidade no egocentrismo, no consumo de coisas e na banalidade. Aí não há lugar para Deus, pois ele é o puro amor, gratuito, universal.

(5) Comentários

  1. FREI JOSAFAT. Sou a sua festejada no mesmo dia em que o senhora nasceu. Lembra-se? Gostei demais do seu artigo. Sábio, profundo, atual e me levou a refletir muito. Gostaria de receber sempre seus artigos, quando for possivel enviá-los.
    Irmã Celina Helena Weschenfelder (Paulinas) Estou em Curitiba

  2. Gostei demais do seu artigo: sólido, profundo, denso e pleno de realidade. Gostaria de receber semprte seus artigos.
    Irmã Celina Helena Weschenfelder (Curitiba) Irmãs Paulinas

  3. Ao falarmos sobre o frei Carlos Josaphat,falamos de uma personalidade muito humana e carismática. Digo isso, porque tive a risquíssima oportunidade de conviver com ele durante 5 anos no convento Sagrada Família,sua residência, quando eu era estudante dominicano. Ele é um filho de São Domingos que deu uma grande contribuição à Igreja do Brasil, sendo inclusive um grande contribuidor da Igreja européia. E nesse artigo, ele expressa o que faz parte da sua vida e missão, como um ser humano, um filho de Deus e de São Domingos, que se preocupa com uma sociedade mais justa, fraterna, humana e cristã.

  4. Lembro-me muito bem (pela Imprensa) da notícia de que Frei Carlos Josaphat fora convidado a morar na Europa (“por gente daqui mesmo”) como a própria Imprensa noticiara na época. Ganhou a Europa e ganhou também o Brasil porque projetou o nome de nosso País com sua cultura em favor da pessoa humana dignificada, valorizando o ensino Sócio-Teológico. Parabéns, Frei Carlos Josaphat. Março-abril de 1964 só serviu para engrandecê-lo e lapidar esse valioso diamante que Deus fez de ti.

  5. Estimado Frei Carlos, que alegria em ler seus textos e entrevistas, sempre com tanta sabedoria e coerência.Que Deus continue o iluminando.

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