Contra a servidão do espírito: sobre política, ética e educação, por Nadja Hermann
(Escher, Relatividade, 1953)
É preciso romper com nossa histórica incapacidade em perceber que anos de contínuo descuido com a educação teriam profundas consequências sociais
A política e a ética, enquanto importantes experiências da vida humana, foram e continuam sendo iluminadas por potentes conceitos de muitos pensadores. A clássica definição aristotélica do homem como animal racional e político teve tal força que o mundo ainda não conseguiu exorcizá-la. Ela evidencia a relação entre logos e polis (entre racional e político), pois o logos habilita o homem a diferenciar o útil do prejudicial e também o justo do injusto (Política I,1253 a10). Pensar e falar sobre essa diferença só é possível na polis, com os outros. Nesse processo nos humanizamos e nos tornamos sensíveis para perceber aquilo que violenta o ethos e assim preservamos a vida.
Uma força dessa natureza se expressou nos movimentos das ruas do Brasil, desde 2013, mostrando uma vontade que reivindica, que protesta. A ordem social violada pelas persistentes denúncias de corrupção, de violência política e ética foi levada ao espaço público. A educação entra nesse cenário porque é ela quem forja a formação da vontade política e ética. Responsabilizar e punir os políticos e todos os envolvidos na corrupção faz parte da uma ordem institucional e moral. Mas não basta. É preciso de cidadãos vigilantes para denunciar o imediatismo do cálculo político e as tentativas frequentes de tirar vantagem em tudo, seja na vida pública ou privada. Além dos prejuízos concretos, isso corrói nossa compreensão moral e nossa capacidade de julgar, porque fragiliza os costumes e esgarça o tecido social. É a educação que prepara os homens para a capacidade racional de distinguir o justo do injusto. Ela permaneceu, na maioria das vezes, obscurecida pela confusão entre obter conhecimento e formar o homem, obliterada por uma miopia que esvaneceu as diferenças entre treinamento de habilidades e formação do eu. É preciso romper com nossa histórica incapacidade em perceber que anos de contínuo descuido com a educação e de lesões na infraestrutura normativa teriam profundas consequências sociais.
O vínculo entre política, ética e educação depende de um longo processo formativo, não evidente de modo imediato; ao contrário, depende de uma multiplicidade de mediações, de experiências, pelas quais cada um de nós afasta-se de si e de seus interesses para se apropriar do mundo e de seus ordenamentos simbólicos. Com esse movimento pode-se reconhecer a verdadeira grandeza das produções culturais e da ética que abrem um novo horizonte e, com isso, enriquecem a própria interioridade. Ou seja, há uma socialização e uma autocriação, que permitem inclusive a revolta contra todo esse processo. A formação é uma abertura para o reconhecimento da alteridade, fazendo com que sejamos capazes de dar sentido àquilo que é exterior a nós, o que significa compreender o outro e compartilhar simbolizações, lealdades e expectativas comuns. É um antídoto à intolerância e à violência.
A preocupação com esse tema não constitui novidade, pois acompanha os homens desde seus primeiros esforços para interpretar o mundo. Afinal Platão já nos tinha alertado, no século IV a. C. que “as cidades para serem felizes, não precisam de muralhas, navios, arsenais, tropas, nem grandeza. Só precisam de virtude”. Rousseau, em outro tempo também questionou se o nosso maior problema não é ainda a educação dos homens e mostrou a importância da educabilidade para superar sentimentos irascíveis e egoísmos e realizar de algum modo a sociabilidade. De lá para cá a complexidade dos problemas aumentou e a nossa responsabilidade também. As reivindicações das ruas mostraram que algo aprendemos, mas há ainda muito por fazer. É preciso questionar nossa educação e, sobretudo, o abandono social a que foi submetida. Sem um profundo processo reflexivo que nos convoque a avaliarmos sem restrições nossas atitudes, corremos o risco de manter a servidão do espírito e da imaginação, incapazes de distinguir o justo do injusto. A filosofia continua sendo convocada para trazer luz a essa experiência.
Nadja Hermann é professora de Filosofia da Educação, pesquisadora do CNPq, autora de diversos livros, entre eles Ética e estética: a relação quase esquecida (EDIPUCRS, 2005); Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética (Editora UNIJUÍ, 2010) e Ética e educação: outra sensibilidade (Autêntica, 2014) e Diálogo/Educação em co-autoria com Márcia Tiburi (Editora Senac, 2014).