INDÚSTRIA CULTURAL DA FELICIDADE
PARA QUEM ESTÁ ACOMPANHANDO O SEMINÁRIO “FELICIDADE?” QUE ESTÁ INDO AO AR NA TV CÂMARA, ESSE ARTIGO FOI PUBLICADO NA REVISTA CULT NO ANO PASSADO.
Tornou-se perigoso o emprego da palavra felicidade desde seu mau uso pelas publicações de auto-ajuda e pela propaganda. Os que se negam a usá-la acreditam liberar os demais dos desvios das falsas necessidades, das bugigangas que se podem comprar em shoppings grã-finos ou em camelôs na beira da calçada que, juntos, sustentam a indústria cultural da felicidade à qual foi reduzido o que, antes, era o ideal ético de uma vida justa.
A felicidade sempre foi mais do que essa ideia de plástico. Tirá-la da cena hoje é dar vitória antes do tempo ao instinto de morte que gerencia a agonia consumidora do capitalismo. Por isso, para não jogar fora a felicidade como signo da busca humana por uma vida decente e justa, é preciso hoje separar duas formas de felicidade: uma felicidade publicitária e uma felicidade filosófica.
A felicidade filosófica é a felicidade da eudaimonia que desde os gregos significa a ideia da vida justa em que a interioridade individual e as necessidades da vida exterior entrariam em harmonia. Felicidade era o nome dado ao sentido da pensante existência humana. Estado natural do pensamento reflexivo, ela seria o oposto da alienação em relação a si mesmo, ao outro, à história e à natureza.
Condição natural dos filósofos, a felicidade seria, no seu ápice, o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento.
Sacralização do consumo
A ausência de pensamento característica de nossos dias define a falta de lucidez sobre a ação. Infelicidade poderia ser o nome próprio desse novo estado da alma humana que se perdeu de si ao perder-se do sentido do que está a fazer. Desespero é um termo ainda mais agudo quando se trata da perda do sentido das ações pela perda da capacidade de reflexão sobre o que se faz.
Sem pensamento que oriente lucidamente ações, é fácil se deixar levar pelos discursos prontos que prometem “felicidade”. Perdida a capacidade de diálogo que depende da faculdade do pensamento, as pessoas confiam cada vez mais em verdades preestabelecidas, seja pela igreja ou pela propaganda – a qual constitui sua versão pseudo-secularizada.
A propaganda vive do ritual de sacralização de bugigangas no lugar de relíquias, e o consumidor é o novo fiel. Nada de novo em dizer que o consumismo é a crença na igreja do capitalismo. E que o novo material dos ídolos é o plástico.
Tudo isso pode fazer parecer que a felicidade foi profanada para entrar na ordem democrática em que ela é acessível a todos. O sistema é cínico, pois banalizando a felicidade na propaganda de margarina, em que se vende a “família feliz”, ou de carro, em que se vende o status e certa ideia de poder, a torna intangível pela ilusão de tangibilidade.
Sacralizar, sabemos, é o ato de tornar inacessível, de separar, de retirar do contato. Na verdade, o que se promove na propaganda é uma nova sacralização da felicidade pela pronta imagem plastificada que, enchendo os olhos, invade o espírito ou o que sobrou dele. A felicidade capitalista é a morte da felicidade por plastificação.
Fora disso, a felicidade filosófica é da ordem da promessa a ser realizada a cada ato em que a aliança entre pensamento e ação é sustentada. Ela envolve uma compreensão do futuro, não como ficção científica, mas como lugar da vida justa que se constrói no tempo presente.
A felicidade publicitária apresenta-se como mágica dos gadgets eletrônicos que se acionam com um toque, dos “amigos” virtuais que não passam de má ficção. A felicidade publicitária está ao alcance dos dedos e não promete um depois. Ilude que não há morte e com isso dispensa do futuro. Resulta disso a massa de “desesperados” trafegando como zumbis nos shoppings e nas farmácias do país em busca de alento.
(26) Comentários
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Realmente, o sentido da palavra felicidade tem sido banalizado à exaustão pela propaganda e pela mídia. Felicidade passou a ser a aquisição e a ostentação de bens materiais de última geração, bem como a conquista de milhares de “amigos” virtuais. O TER em detrimento do SER. Acredito que o ser humano moderno esteja caminhando a passos largos para a total e completa infelicidade e insatisfação. Enquanto esses falsos paradigmas de felicidade não forem alterados, muita gente ainda vai sofrer de ansiedade e depressão. Acredito que a verdadeira felicidade seja uma coisa muito simples, que consiste em você, seus amigos e sua comunidade poderem conviver em harmonia e em absoluto espírito de coletividade e cidadania. Felicidade não se compra, se vive, se respira. Mas não creio na existência de uma felicidade apenas individual e compartimentada. Felicidade coletiva é muito mais felicidade. Impossível ser feliz sozinho, de maneira independente dos outros, como já dizia o poeta. Felicidade não se divide, se multiplica. Não deve ser objeto de consumo e privilégio, mas de inclusão e comunhão.
Grande abraço!
Eu detesto ter que concordar com você mas… deste texto eu gostei.
Eu acho que isso é uma bobagem. Ninguém se deixa enganar por nada, não existe magia que dure muito tempo nem vício adquirido que não se estresse. Tratar a humanidade como idiota é bobagem. Não há como abrir os olhos de todos com psicologia anti psicologia, mudar a orbita do planeta com gritos de socorro não vai adiantar. Só o Al Gore mesmo que é capaz de distribuir simultaneamente pra todas as mídias aquela verdade inconveniente dele. Minar o povo com desconfiança só vai confundir o sentido natural propagando a mesma técnica psicológica. Ninguém é louco o suficiente ainda.
Ótimo texto!
“Felicidade” e “sucesso” são assuntos recorrentes. Todo mundo quer, mas pouquíssimos sabem dizer o que entendem por essas expressões. Quase todos confundem meios com fins.
Em salas de aula, treinamentos, consultorias, coaching, essa demanda é constante. Escrevi um artigo a respeito – “Você quer ter sucesso e ser feliz? Cuidado!” -, e publiquei em http://www.jlourenconeto.com.br/2012/02/voce-quer-ter-sucesso-e-ser-feliz.html, para provocar alguma reflexão em jovens, com os quais tenho trabalhado.
professora.quais os horarios do programa?
bjs
Olhos para quem pode ver ouvidos para quem pode ouvir.
Bem vinda lucidez!
Pesado, mas a pura verdade…
vc se permiter a ser enganado, por fragilidade , falta de conhecimento, etc….
Então se atrever a ser feliz seria se tornar o mais radical dos seres?
Sem rumo a resposta diante do vazio é o nada e o silêncio encobre os gritos da alma…
Uaaaaauuu!!! Ótimo é pouco…
Uma das melhores coisas que li ultimamente!
Bjs
Reblogged this on Beto Bertagna a 24 quadros.
O mérito do mercado, da indústria, da propaganda, desta força aí fora que parece comandar nossas vidas, é MATERIALIZAR CONVINCENTEMENTE esta pseudo-felicidade fazendo – a parecer felicidade acessível, por isto tantos seguidores. Seres humanos são, essencialmente, vazios e medrosos, e, paradoxalmente, desejosos do que sequer conhecem! Eu acredito em preencher aquele vazio com ALGO que dispense a necessidade destes placebinhos. Este blog, por exemplo, é um serviço de utilidade pública para a humanidade, totalmente pró-felicidade ‘eudaimoniana’! Fico sempre um pouco mais feliz cada vez que lhe leio. Obrigada!
Esse arranjo de palavras, essa organização de pensamento, isso sim me dá ‘felicidade’!
Beijo
Sou do tipo DISTRAÍDA: As vezes me pego sorrindo e adoro isso pois sei que, “desse nada” sinto o “meu momento de felicidade”. O meu “bem estar geral”! O meu Relax físico e mental. Um cometa
Mas quando, CONSCIENTEMENTE faço o que gosto como, escrever com papel e caneta ouvindo o rádio ou escrever no computador ouvindo o rádio. Essa dialética me faz sorrir e é o “meu momento de felicidade”! _Portanto um sorriso meu revela.
Íii tá piegas, tá complicado, pois é essa sou eu!
Acho a propaganda a ferramenta mais cruel do sistema capitalista, pq leva para todas as classes e culturas um único ideal de consumo e coloca tal ideal como único meio de ser feliz. É triste ver crianças e adolescentes desejando ter, ter e ter, tanto a ponto de assaltarem aqueles que têm…É triste ver que pessoas se matam de trabalhar para ter um padrão de vida, de consumo, tido como ideal para sua felicidade, mas que mesmo assim ñ são felizes…É bem como vc colocou, “zumbis andando no shopping”…Adorei o texto e me faz refletir até sobre mim mesma…
é duro ver a que foi reduzida a Felicidade, a gente vê todos os dias, pessoas da nossa convivência iludidas com a felicidade do ter, não que o ter não seja importante, porque passar necessidade não é uma experiência boa, eu vejo pessoas afogadas nas mágoas do ter, como se depositassem toda a sua felicidade num objeto, substituível. A verdadeira felicidade não pode ser comprada a plena felicidade não pode ser possível, pode ser tocada naqueles momentos mágicos que a vida nos proporciona.
Ninguém pode comprar um sorriso, uma batida de coração, um toque nas mãos, um olhar coisas que expressam a felicidade. Objetivaram a felicidade, criaram tal mentira e muitos insistem em não ver.
Muito bom este texto! Realmente, vivemos um momento em que a felicidade está banalizada. Tudo é muito superficial, os relacionamentos, os desejos. Com isso as pessoas em geral acham que se satisfazem comprando, adquirindo brinquedinhos que lhe dão uma falsa ilusão de felicidade. Poucos dão valor a esta reflexão citada no texto, ninguém quer saber de pensar, dá dor de cabeça, e se der dor, toma-se um remédio, é mais fácil do que refletir sobre o que está incomodando.
Perfeita a reflexão! Uma sacudida violenta nas preguiçosas adesões ao que a propaganda sobre a FELICIDADE determina. A conscientização dói, mas como bem disse o mestre Paulo Freire, é irreversível. Para a nossa Felicidade!
Tua filosofia ecoa o choro belo de um violino, em meio a uma garoa de serpentes, acordando os ouvidos e os sentidos de um sono congelado, sem sonhos, para a contemplação de universos que dançam.
Que bonito…
Adorei o texto. Te conheci através do programa saia justa. Depois que vc saiu, te reencontrei, por acaso no seminário “Felicidade”. Passei acompanhar o programa que amei, gostei muito da sua reflexão em relação a depresão.Que todo depresivo é um egoista, forte, porém, verdadeiro. Depois estava olhando a programação da feira do livro A Flipoços ,aqui na minha cidade , e me deparei com seu nome. Fui à palestra e ainda arrastei meu marido comigo. Sentei na primeira fileira claro, com o livro O manto em punho. Não preciso nem dizer o quanto foi prazeroso o encontro. Consegui o autógrafo, claro. Fiquei parecendo uma adolescente perto do seu ídolo uma boba e morrendo de vontade de te da um abraço, mas me contive. Depois fiquei pensando como pode uma pessoa que eu não conheço pessoalmente despertar tanto afeto?Cheguei a conclusão que assim como os olhos são a janela da alma, para nós leitores , os livros são a janela da alma dos escritores. Bom, chega de ser tão sentimentalóide. Enfim, entrei no blog. Eu que não era dada a redes sociais me cadastrei no twitter e estou apreendendo a twittar menina. Graças a tv ( ou se preferir O olho de vidro ) eu conheci a escritora, filósofa e mãe da Malu, Marcia Tiburi. Que bom te reencontrar. Beijos.
A eficiencia dos sistema em promover a alienação e desejos inventados a cada momento para vender de um tudo é impressionante! Uma sociedade vitima dessa nova subjetivação: comprar e comprar incluindo a Felicidade!
Como despertar nessa situação um pensamento critico?
Alguem disse (não me lembro quem) que com o fim do capitalismo que se aproxima, as mudanças vão acontecer, mas que as pessoas só se mexem quando a crise entrar em casa…ai é brigar para não morrer! A crise está invandindo casa em progressão geometrica…!
Fantástico texto e importante assunto, cada vez mais presente na nossa insaciável sociedade do consumo e do espetáculo (Debord). Lembrou-me dos textos de Herbert Marcuse, onde ele critica a chamada “felicidade social”, imposta a nós pelo meio exterior e internalizada em nível pulsional (uma análise freudiana), levando-nos a defendê-la a todo custo como se fosse realmente “nossa” vontade, “nosso” desejo, e como sendo a “única” forma de viver. O resultado? Uma felicidade impossível de nos satisfazer, gerando um círculo vicioso de consumo sem fim e distúrbios sociais. Pior: com isso, abrirmos mão da busca pela liberdade e pela felicidade filosófica de cada indivíduo. Triste.