A concepção de arte em Dostoiévski

A concepção de arte em Dostoiévski

Desde cedo, o autor compreendeu que era preciso representar os sintomas da estrutura dinâmica da vida social

 

Dostoiévski iniciou sua carreira literária em meados dos anos 1840. Praticamente na mesma época, surgiram também outros escritores de grande talento, como Turguêniev, Gontcharov, Herzen, Nekrásov. Porém, nenhum deles suscitou tanta expectativa como Dostoiévski. Recebido por todos como um escritor da então chamada “Escola Natural”, cujo marco inicial é O capote, de Gógol, já em seu romance de estreia, Pobre gente, Dostoiévski polemiza abertamente com esta obra gogoliana. Essa escola, com orientação de cunho “realista”, na tentativa de afirmar o valor do homem comum, procurava mostrá-lo de forma objetiva, “tal como ele é”, o que incluía toda a limitação de suas capacidades inventivas. Dostoiévski rejeita de imediato esse modo de representação, considerando-o insuficiente não só para penetrar na essência significativa dos fenômenos sociais, como para a representação das características mais determinantes de suas personagens. Ao colocar, no centro de Pobre gente, um homem da mais baixa extração social, a mais limitada natureza humana, sua intenção é deixá-lo revelar-se por si mesmo como uma criatura capaz de pensar, sentir e agir da maneira mais profunda e humana. Para isso, ele passa para o ponto de vista da própria personagem tudo o que até então era apresentado do ponto de vista do escritor. Especificidade essa que é vista até hoje como uma característica essencial de seu modo de escrever.

Mas esse ponto de vista extremamente original e positivo sobre o homem, sobre a natureza humana, na representação de suas personagens, não foi compreendido. Os mesmos críticos que de início o haviam colocado num pedestal passaram a recriminar cada vez mais o que consideravam uma “limitação” de seu realismo, a qual para eles se revelava na falta de tipicidade e verossimilhança na sua maneira de representar a realidade, em sua preferência pelas extravagâncias psicológicas, psicopatológicas, por fenômenos isolados e excepcionais.

A condenação categórica à concepção de arte do escritor na época, sem dúvida, estava relacionada ao esforço que sua compreensão impunha ao leitor. Belínski, que havia depositado no autor de Pobre gente grandes esperanças para a nova orientação que ele próprio vinha imprimindo à literatura russa, foi arrasador em seu julgamento das obras seguintes. Em O duplo, ele criticou a falta de objetividade do autor, mas também chamou a atenção para o “enorme poder de criação” que ele revelava nesta obra. Já com a publicação da novela A senhoria, Dostoiévski foi acusado de estar em busca de um caminho inédito qualquer. No entanto, nessa novela aparece seu primeiro personagem intelectual, Ordínov, um jovem “sonhador” idealista, que já traz em si, em germe, o subsolo, prenunciando seus sucessores, os heróis semelhantes do escritor que aparecerão nos anos 1860, entre eles o “homem do subsolo” e Raskólnikov, de Crime e castigo. Ordínov anuncia já o terrível fenômeno urbano que será esse tipo. A diferença é que ele ainda não havia conseguido compreender a si mesmo, criar a sua filosofia do subsolo e, portanto, encontrava-se completamente vulnerável frente à realidade. Mas não há dúvida de que seus sucessores todos ligam-se a ele de forma original, idealizando as mudanças dos tempos, da moral humana e das concepções de mundo.

Tentativa de inovação formal

No afã de mostrar o homem em suas relações com a realidade mais profunda, seu método de criação se define por uma orientação para a representação da vida de um ponto de vista da atualidade corrente. Daí suas declarações de que os fatos da realidade dominam sua consciência, de que “sem os fatos, tudo é miragem”. No entanto, o que mais o interessava neles era justamente aquilo que escapava do campo de visão dos outros escritores, e que fazia com que suas obras revelassem com maior intensidade os problemas da época.

Em um artigo de 1860-61, Dostoiévski faz uma crítica arrasadora ao quadro mais badalado de uma exposição em Petersburgo, que representava, em uma estalagem, a parada de um grupo de presos conduzidos à Sibéria. Ele diz que a cena é representada com grande conhecimento do assunto e se mostra perfeitamente verossímil, de uma fidelidade extraordinária, exatamente como acontece na natureza, se olhado apenas na superfície. Mas, em sua opinião, o que se exige do artista é “algo, mais amplo e mais profundo” do que “a verdade fotográfica, a precisão mecânica”, captada pelos “os olhos do corpo”. Para ver e mostrar “os infelizes presos como gente”, o artista tinha de olhar para eles também “com os olhos da alma”.

E não havia sido essa mesma a sua reação contra a apresentação dos tipos humildes nos “ensaios fisiológicos” dos anos 1840, que o conduzira a ver e a representar esses tipos desde o interior, como seres humanos plenamente sensíveis, e não como estereótipos?

Em outro artigo de 1873, ao reafirmar o papel da subjetividade, ele declara que “o gênero é a arte da representação da realidade cotidiana, contemporânea, pela qual o artista passou pessoalmente e viu com os próprios olhos”. Fundamental para a compreensão do seu método artístico é, justamente, o significado da expressão “ver com os próprios olhos”. Dostoiévski compreendeu desde cedo que “a tarefa da arte não é a casualidade da vida, mas o total da ideia dela”, que não é com a transmissão precisa, correta e verdadeira da realidade que se cria uma obra de arte. Em seu processo criador, ao se basear em fatos raros, extraordinários, excepcionais, sua preocupação era descrevê-los de forma a revelar as leis básicas da vida, a criar personagens que, de fato, representassem tendências essenciais de seu tempo.

Nesse período tão crítico para o seu país, ele soube perceber que não eram apenas as relações entre as pessoas, as formas de prática social, os interesses que mudavam, mas, também, a noção do homem sobre si mesmo e seu lugar no mundo. E o que ele faz é se dedicar a representar, em todos os seus desdobramentos, os sintomas que essa estrutura cambiante da vida social, então em formação em seu país, provocavam na consciência moral do indivíduo.

Ainda que convencido de que sem o dom da “visão” da alma do homem a arte se torna simplesmente impossível, não era a análise psicológica que ele considerava a chave para a revelação da essência da personagem, para a “afirmação da verdade na arte”. Nesse sentido, há um trecho bastante conhecido do caderno de notas de 1880-81, no qual ele define de forma magnífica as peculiaridades do seu realismo: “Com um realismo pleno, encontrar o homem no homem… Chamam-me de psicólogo: não é verdade, sou apenas realista no sentido mais elevado, ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana”.

Para grande parte dos pesquisadores, o lugar de Dostoiévski é ao lado dos escritores realistas da época. Mas ele deu uma tal vitalidade a seus heróis que, para uma geração inteira de psiquiatras que estudaram tomando seus romances como referência, seu realismo é psicológico. Muitos dos estudiosos de sua obra procuraram, ainda, aproximar seus pontos de vista aos de uma série de pensadores, como Kant, Hegel, Nietzsche, os existencialistas. Porém, todas essas aproximações acabam se mostrando relativas.

Dostoiévski viveu numa época de grandes transformações sociais, em que fatos incompreensíveis, inusitados, “fantásticos” vinham bruscamente à tona, assinalando o surgimento de algo novo e “ansiava por uma palavra nova”. Para ele, era justamente nesse novo contexto que devia ser buscado, o que constitui a própria essência da realidade. Daí suas declarações insistentes de que os fatos passavam despercebidos e ninguém queria notá-los, parar para pensar neles. Ele, ao contrário, não poderia deixá-los para trás; nem conseguiram dissuadi-lo os gritos daqueles críticos que julgavam sua obra uma representação falsa da vida.

Uma nova maneira de ver o mundo

Em contraposição à crítica russa, à tendência que então se desenvolvia através principalmente do “ensaio fisiológico”, ele não vê o realista como um copista indiferente aos fatos.

Diferentemente dos grandes realistas franceses, Dostoiévski, ao acentuar o significado dos fatos na literatura, não privilegiava a descrição exterior, principalmente com abundância de costumes, o que, segundo ele, parecia sinais característicos do realismo artístico. O que o assemelha em relação aos realistas franceses é a busca não por aquilo que era conjuntural, transitório, mas sim uma marca da situação do mundo, da época, tomada em seu todo; uma vez que ocorrências incomuns, inesperadas obrigavam a remexer em todas as questões e a pensar no destino de toda a humanidade.

É assim que, já em seu primeiro romance, coloca em questão o modo de proceder então dominante e, com ele, a própria posição do narrador. Não foram por acaso, portanto, as polêmicas todas que surgiram em torno de Pobre gente logo após sua publicação. A principal questão levantada referia-se justamente ao método de criação de seu autor, ao ponto de vista em que se dava a “reabilitação” do homem empreendida por ele.

O ponto de vista que expressa confiança na capacidade de contemplação objetiva dos fenômenos da vida, na possibilidade de uma explicação racional deles, foi rejeitado por Dostoiévski. De modo que a impressão de uma realidade objetiva, dominada perfeitamente pelo autor, se não desaparece em sua obra, pelo menos passa quase despercebida.

A perspectiva que ele adota, e à qual está vinculada sua concepção de verossimilhança, representa uma maneira de expressar a liberdade, a falta de acabamento interior da personagem, como aponta Bakhtin, mas reflete, também, a incapacidade, tanto sua como de seus personagens, de apreender de forma objetiva, em um mundo que foi se tornando cada vez mais complexo e fragmentado, o que constitui o verdadeiro significado da existência.

O que se destaca, então, como elemento extremamente significativo no sistema estrutural da obra de Dostoiévski, e que constitui uma grande contribuição sua não só para a literatura russa como mundial, é a posição do autor diante do seu objeto. Posição esta que deposita inteira confiança na capacidade da personagem de exprimir a sua própria verdade, mas apenas a sua, pois rejeita qualquer possibilidade de ela exprimir a verdade do outro, das outras personagens.

Esse novo ponto de vista na representação das personagens, das situações sociais e humanas que as envolve, ainda que evidencie as tendências então em curso, transcende todas elas.

Dostoiévski fez surgir uma literatura que escapa dos limites de toda uma época, quer do ponto de vista histórico-social e geográfico, quer do ponto de vista literário, apontando infinitamente para a modernidade. Pois ao tentar redefinir e assimilar, na estrutura de suas obras, a nova posição do indivíduo no mundo, ele cria uma forma inédita, capaz de exprimir uma nova visão do homem e de sua realidade, que teve grande influência no processo de evolução da literatura russa e mundial do século 20.

(3) Comentários

  1. Essa matéria conseguiu resumir (se é que isso é possível) toda a essência da obra de Dostoiévski, um panorama diversificado de suas personagens e suas nuances. Machado de Assis também se utilizava de narradores em primeira pessoa, e pertencia ao Realismo e isso também gerou certos “problemas” na hora de “classifica-lo” como tal.

  2. Embora o anúncio do “celular ferrari” intentasse constantemente contra a atenção do leitor, o texto não deixou de ser cativante.

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