Da gratidão

Da gratidão

Os livros encerram uma utopia das relações pessoais

Francisco Bosco

Todo leitor já o sentiu: ao término de um livro que nos tenha sido importante, que tenha nos emocionado ou tornado mais aguda a nossa percepção das coisas, sentimos formar-se em nós uma vontade de agradecimento, de retribuição. Dedicatórias a autores mortos são uma das manifestações dessa gratidão. Quando se trata de escritores vivos, é comum um leitor levar a cabo a vontade de retribuição, procurando o autor do livro apenas para dizer-lhe o quanto este livro lhe foi importante. Essas palavras recompensam o autor, por elas o leitor expressa sua gratidão: devolve o dom ao autor, dá ao autor algo – sua própria manifestação de gratidão – ao passo que o autor havia lhe dado o livro.

Ocorre entretanto que, entre as inúmeras formas do par dar/receber que existem em nossa cultura, a forma em que se engaja o livro tem a especificidade de não operar com o tema da dívida. Se o leitor se sente agradecido, é precisamente por ter recebido um dom que não cobra nada por si: a gratidão surge da gratuidade do dom, de sua recusa à qualquer exigência de reciprocidade. Um livro não exige agradecimento, seja sob a maneira meramente formal, seja sob a forma da fidelidade. Com efeito, alguns livros exigem a gratidão sob a forma de fidelidade, e com isso temos um possível critério para afirmarmos que um livro tem ou não valor: os livros que exigem fidelidade não têm valor algum, ou têm menos (a depender do nível de exigência que impõem ao leitor) do que os livros que nada exigem. Blanchot dizia que um dos maiores perigos da leitura é o leitor insistir em permanecer o que é, tentando encarniçadamente interpretar um livro no sentido do que confirme sua identidade. Portanto, há leitura, rigorosamente falando, quando o leitor se altera, amplia seus horizontes, aumenta sua capacidade de duvidar. Nietzsche propôs que a medida da força de um homem fosse a medida de sua capacidade de suportar a verdade (sobretudo a de não haver transcendência); pode-se dizer que a medida da força de um leitor é a medida de sua capacidade de suportar as dúvidas. Sabemos o quanto a verdade torna as pessoas pesadas, muitas vezes um fardo. As pessoas investidas de certezas pesam demais, e tendem a ser percebidas como chatas: sua chatice vem de não perceberem que suas certezas pesam sobre os outros, pesam sobre a fala, impedindo-a de circular. Reconhecemos a saúde muitas vezes pela mobilidade; os sujeitos que duvidam costumam ter grande estabilidade aparente e uma agilíssima mobilidade interior. Além, é claro, de uma boa dose de angústia.

Você não entendeu nada

Os livros que exigem fidelidade tornam as pessoas pesadas como eles. É claro que se pode tanto ler fielmente um livro que nada exige, quanto ler “livremente” um livro que tudo exige. Pode-se ler Nietzsche com canina fidelidade – conhecemos bem as contundentes ressalvas de Zaratustra a esse procedimento – como pode-se ler a Bíblia literariamente, apreciando o estilo, saboreando a História, sem comprometer-se com o caráter doutrinário. A associação entre fidelidade e chatice é bem familiar aos que frequentam o meio acadêmico: os leitores que conjugam em si certo sentido da terminação “ano” (kantiano, deleuziano, nietzscheano etc.) costumam ser chatos porque retiram a mobilidade do pensamento que os inspira: repetem-no, coagulam-no, e ainda trazem o autoritarismo para a experiência da leitura (se você não ler um pensamento da forma como querem, “você não entendeu nada”, como disse certa vez um professor adorniano e marxista para um brilhante amigo meu que propunha uma tese sobre Adorno e a mística ocidental). Os livros livres são aqueles que contribuem para que o leitor se invista de força suficiente para adquirir sua própria mobilidade; isso é o que se pode chamar verdadeiramente de autoajuda, ao passo que o gênero conhecido como autoajuda é antes o contrário, isto é, uma “exoajuda”, uma ajuda que, por vir exclusivamente de fora, sem requerer uma transformação subjetiva profunda, dificilmente pode ajudar em alguma coisa. E os leitores livres são aqueles que contribuem para restituir a um pensamento sua grande mobilidade, mobilidade que não cessará nunca, enquanto houver leitores livres para, com sua força, pôr pensamentos em movimento.

As relações pessoais são muitas vezes marcadas pelo tema da dívida. Decisivamente, por exemplo, a relação entre pais e filhos. Os pais dão a vida aos filhos e, variando de acordo com as diversas situações, dão também moradia, alimentação, educação, assistência médica, lazer etc. Entretanto, acredito, poucos são os pais que dão tudo isso sem nada esperar receber em troca. A dívida pode permear toda uma relação entre pais e filhos, vindo explosivamente à tona no momento em que sua tensão implícita se rompe; quando, por exemplo, o filho não segue os planos que lhe foram traçados pelo pai, ou a filha se desliga dos valores transmitidos pela mãe: “Ingratos!”, é a acusação que ressoa. Mas só há ingratidão quando há dívida; é preciso lembrar que essa dívida tem a característica curiosa de não ter sido contraída voluntariamente pelo suposto endividado. Dar engajando o outro, a quem se dá, em uma dívida é um falso dar. Dar somente atinge a plenitude de si quando é absolutamente gratuito: dar deve ser sempre dar condições para que o outro cresça, amadureça, se fortaleça por si mesmo.

O parricídio da escrita

O livro não deve imitar o pai-credor. Nesse sentido, os livros religiosos tendem a ser os antilivros por excelência: representam a palavra do Pai, de Deus, a palavra imutável e indisputável (cuja verdade contudo é disputada pelos exegetas, mas apenas por eles). Deus que pode ser o pior entre todos os credores, aquele que exige em contrapartida pelo dom nada menos que a própria vida, que pode engajar o sujeito numa dívida infinita, irremissível, sendo essa, segundo Deleuze, a infeliz novidade trazida pela figura histórica do padre. Mas há livros religiosos, como há livros de autoajuda, como há livros doutrinários de diversas formas – livros que exigem fidelidade e que ignoram que todo processo de fortalecimento de subjetividade é necessariamente independente: nada se fortalece quando apenas se apoia em uma força que está alhures. Dizer que o processo de fortalecimento de uma subjetividade é independente não significa dizer que ele não seja atravessado pelo outro – os livros, as pessoas etc –, mas que o outro deve apenas ajudar a criar as condições necessárias para que a força se forme por dentro, autossustentada. Há, portanto, livros que exigem fidelidade e que antes fragilizam do que fortalecem, mas, por serem livros mesmo, isto é, por serem escritos, já trazem em si alguma possibilidade de liberdade. Sabemos que a escrita foi desvalorizada na Antiguidade precisamente por propiciar a subversão da fidelidade: a escrita vem ao leitor na ausência do autor, sem que este possa guardar os sentidos do escrito. O leitor pode, assim, enveredar por caminhos dos sentidos que o levem longe da direção pretendida pelo autor (que não está presente, como nas situações da fala, para controlar os sentidos). Trata-se, portanto, para os livros e para os leitores, de assumir e radicalizar a potência de liberdade da escrita.

A gratidão surge espontaneamente da gratuidade do dom. Estabelece-se assim – quando se manifesta a gratidão: dedicando, elogiando, expressando simplesmente o agradecimento – uma reciprocidade não mediada pela dívida. Todo dar, nenhuma cobrança: não será essa uma lição fundamental dos livros, uma verdadeira utopia das relações pessoais?

franciscobosco@terra.com.br

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Novembro

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