Entrevista com Carlos Nelson Coutinho

Entrevista com Carlos Nelson Coutinho

Carlos Nelson Coutinho é reconhecido internacionalmente como um dos maiores especialistas no pensamento de Gramsci. Responsável pela coordenação e edição da obra do autor italiano no Brasil, Coutinho é professor na UFRJ e autor de livros fundamentais para os estudos de teoria política no país, como A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios (Salamandra) e Gramsci, um Estudo sobre Seu Pensamento Político (Civilização Brasileira). Nesta entrevista à CULT, enfatiza a centralidade da política no pensamento de Gramsci e fala sobre sua recepção no Brasil.

Alvaro Bianchi

CULT – Por que o pensamento de Gramsci encontrou uma acolhida tão calorosa entre pesquisadores brasileiros?

Carlos Nelson Coutinho – É evidente que isso depende, antes de mais nada, da extraor-
dinária fecundidade de seu pensamento: são poucas as áreas das chamadas “ciências humanas” para as quais Gramsci não tenha contribuído. Mas a principal razão dessa acolhida favorável é o fato de que muitos dos conceitos de Gramsci nos ajudam a pensar mais profundamente a especificidade brasileira. Penso nos conceitos de “Estado ampliado” e de “guerra de posição” como centro estratégico da luta pelo socialismo. Gramsci concebia esses conceitos como imprescindíveis para compreender os processos sociais do que ele chamou de “Ocidente”, ou seja, de sociedades mais complexas, onde existe uma relação equilibrada entre Estado em sentido estrito e sociedade civil.

Ora, o Brasil tornou-se progressivamente, nas últimas décadas, um país de tipo ocidental, tal como Gramsci o compreende. Não é casual que a segunda e mais duradoura incursão de Gramsci no Brasil, iniciada no fim dos anos 1970, tenha se dado em estreita combinação com uma autocrítica da esquerda que, naquele momento, era feita não só pelos que haviam aderido à luta armada como forma de combate à ditadura, mas também pelos que, como o Partido Comunista Brasilero (PCB), supunham que o Brasil era ainda um país semifeudal, atrasado, carente de uma revolução democrático-burguesa ou de libertação nacional. Gramsci  ajudou-nos e  ajuda-nos a repensar a estratégia socialista adequada ao país “ocidental” em que o Brasil se transformou.

CULT – Que outros conceitos do autor seriam úteis para pensar nossa realidade?

Coutinho – O conceito de “revolução passiva”, ou seja, de um processo de transformação que se dá pelo alto, com exclusão do protagonismo das classes subalternas, vale como uma luva para momentos essenciais de nossa formação histórica, da Independência à mal chamada “Nova República”. Cabe também lembrar o modo pelo qual Gramsci tratava das disparidades regionais na Itália, do que ele chamava de “a questão meridional”. Para ele, não se tratava de duas Itálias, já que o atraso do sul era funcional ao desenvolvimento do norte industrial, tal como ocorre em nosso país, invertidas as posições geográficas. Finalmente, quem estudou a história de nossa intelectualidade se surpreende com a pertinência para nós do conceito gramsciano de “nacional-popular”: tal como na Itália, também no Brasil os intelectuais caracterizaram-se quase sempre, com honrosas exceções, por se manterem distantes do povo-nação, gerando assim uma cultura abstratamente cosmopolita e “ornamental”. Certamente há ainda outros conceitos gramscianos que podem nos interessar diretamente.

CULT – Quais são os principais desafios para o desenvolvimento dos estudos gramscianos em nosso país? Que temas e abordagens deveriam ser desenvolvidos?

Coutinho – Antes de mais nada, é preciso “limpar” Gramsci das muitas deformações liberais que lhe foram anexadas por alguns dos seus leitores brasileiros. Gramsci era comunista, um comunista “crítico”, que já denunciava a “estatolatria” imperante no modelo stalinista – mas era e permaneceu até sua morte um defensor da “sociedade regulada”, o belo pseudônimo que inventou para o comunismo. Sua proposta de revolução por meio da “guerra de posições” não é uma proposta de melhorar o capitalismo, mas de superá-lo por meio da criação de uma nova e inédita ordem social. Seu conceito de “sociedade civil” nada tem a ver com o tal “terceiro setor”, situado para além do Estado e do mercado e considerado o reino do bem em oposição ao mal representado pelo Estado. Ao contrário, na medida em que é atravessada por relações de poder, a sociedade civil gramsciana é um momento do Estado, uma importante arena da luta de classes. Nesse sentido, parece-me muito importante, hoje, não só desenvolver pesquisas específicas que apliquem categorias de Gramsci à nossa realidade, mas também empreender estudos que estabeleçam de modo rigoroso o que ele realmente disse. Só assim será possível resgatar a dimensão revolucionária de seu complexo e riquíssimo pensamento.

CULT – Ao longo dos últimos 40 anos, houve alterações temáticas ou teóricas significativas na recepção dessa obra no Brasil?

Coutinho – Em sua primeira incursão no Brasil, nos anos 1960, Gramsci foi apresentado por seus editores e tradutores sobretudo como um grande filósofo e um brilhante crítico da cultura. Esses primeiros editores eram jovens intelectuais comunistas, que respeitaram certa divisão do trabalho pela qual eles tinham plena autonomia para definir a política cultural do PCB, mas reconheciam o “direito” da direção de formular a linha política geral. É claro que isso empobreceu a leitura de Gramsci. Só mais tarde foi reconhecido o fato de que o centro da reflexão de Gramsci – ao qual se subordinam suas muitas observações sobre filosofia, literatura etc. – é a política. Gramsci é o maior teórico marxista da política. Suas principais contribuições para a renovação do marxismo residem precisamente na nova formulação que ele deu às teorias marxistas do Estado e da revolução. Não se trata, é claro, de subestimar o valor das reflexões “filosóficas”, “sociológicas”, “pedagógicas” etc. de Gramsci, mas de compreen-
dê-las no quadro de uma totalidade que tem na política o seu eixo articulador. Os mais importantes trabalhos sobre Gramsci publicados no Brasil nos últimos 20 ou 30 anos têm consciência dessa centralidade da política em sua obra.

BIBLIOGRAFUA SELECIONADA

Cadernos do Cárcere (6 vols.)
Antonio Gramsci
(Civilização Brasileira, 1999)
Seis volumes que englobam a produção feita por Antonio Gramsci no período em que estava preso na Itália. O livro é dividido de acordo com os temas que Gramsci abordava, como, por exemplo, a filosofia de Benedetto Croce, a questão da educação e da literatura.

As Rosas e os Cadernos: O Pensamento Dialógico de Antonio Gramsci
Giorgio Baratta
(DP&A, 2004)
O autor faz uma análise da obra de Gramsci e traça pontos relacionando os conceitos e o conjunto de estudo do pensador, estabelecendo uma relação com eventos da atualidade.

Roteiros para Gramsci
Guido Liguori
(UFRJ, 2007)
Uma obra para estudiosos de Gramsci e para os que pretendem entrar em contato com o pensamento do filósofo. Liguori examina neste livro os principais conceitos de Antonio Gramsci, como ideologia e sociedade civil.

Cartas do Cárcere
Antonio Gramsci
(Civilização Brasileira, 2005)
Volume de Cadernos do Cárcere dividido em duas partes. A primeira traz uma introdução ao estudo da filosofia, e a segunda trata da filosofia de Benedetto Croce e apontamentos sobre a teoria econômica, entre outros aspectos.

Gramsci, o Estado e a Escola
Rosemary Dore Soares
(Unijuí, 2000)
Nesta obra, Rosemary Dore Soares defende a ideia de que possuímos uma base sólida para reformarmos a estrutura da escola atual.

O Laboratório de Gramsci: Filosofia, História e Política
Alvaro Bianchi
(Alameda, 2008)
O livro baseia-se na reflexão a respeito da relação entre filosofia, política e história nos Cadernos do Cárcere, obra escrita por Antonio Gramsci no período em que esteve preso.

Escritos Políticos
Antonio Gramsci
(Civilização Brasileira, 2004)
Obra escrita antes da prisão de Gramsci, ocorrida em 1926. Os escritos compõem a linha de pensamento do filósofo ainda em processo de formação, quando se dedicava à militância política e jornalística.

Gramsci: Um Estudo sobre Seu Pensamento Político
Carlos Nelson Coutinho
(Civilização Brasileira, 1999)
O livro analisa os pontos decisivos da formação e sistematização da teoria política gramsciana. Depois de abordar o período em que Gramsci assimila elementos essenciais de Marx e Lenin, o autor discute os problemas metodológicos de sua obra da maturidade, os Cadernos do Cárcere.

Gramsci e a Revolução
Lincoln Secco
(Alameda, 2006)
O historiador faz uma análise dos estudos de Gramsci que sofreram grande impacto com a Revolução Russa e acabaram direcionando o interesse do pensador para a Revolução Francesa.

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