O conceito de literatura universal em Goethe
Para Goethe, o ideal da Weltliteratur se contrapõe à estreiteza nacionalista do romantismo alemão
Izabela Maria Furtado Kestler
É importante aqui uma explanação concisa sobre a história da Alemanha na primeira metade do século 19. Essa contextualização histórica visa explicar o quadro estético fragmentado da vida cultural alemã. A Alemanha enquanto estado nacional não existia até 1871, data da primeira unificação alemã, que acontece no contexto da Guerra Franco-Prussiana. Trata-se, portanto, de uma formação nacional com séculos de atraso em relação a outras nações européias há muito consolidadas, como França, Reino Unido, Portugal e Espanha.
Havia até 1871 inúmeros estados alemães mais ou menos coligados. Basta lembrar que o Sacro-Império Romano-Germânico da Nação Alemã só deixou de existir por imposição de Napoleão em 6 de agosto de 1806. Essa estrutura imperial, que data do século 15, foi consolidada em 1648 com o Tratado de Paz da Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 anos. A unificação alemã era, portanto, até 1871, apenas um sonho patriótico. Nacionalismo e patriotismo, por outro lado, não fomentam, na maioria das vezes, ideais democráticos. Esse foi o caso da Alemanha desde o início do século 19, quando a ocupação e dominação francesas em vários estados alemães no bojo das guerras de coalizão contra a França revolucionária e as vitórias do exército napoleônico sobre os exércitos dos territórios alemães insuflaram um sentimento nacionalista de cunho francófobo.
Os primeiros movimentos patrióticos em solo alemão estão assim inscritos nesse contexto de resistência à dominação francesa. Os ideais da Revolução Francesa de 1789 – igualdade, liberdade, fraternidade – também são renegados em virtude da preponderância da luta patriótica. Particularismo, busca das raízes populares germânicas, patriotismo e nacionalismo estavam assim na ordem do dia e configuraram o espírito do movimento romântico alemão, que despontara em Jena, em 1795.
O apogeu do movimento romântico alemão – entre os anos de 1805 e 1810 – coincide com a época de maior amplitude do domínio napoleônico sobre os territórios alemães. Durante esse apogeu predominam nas obras literárias de todos os gêneros os sentimentos patriótico e nacionalista, assim como na recém-criada germanística o estudo do idioma e das raízes populares da literatura. O término do domínio napoleônico em 1815, no entanto, não significou a concretização dos ideais nacionalistas, pois a Alemanha permaneceu repartida no Congresso de Viena, que redefiniu os limites e fronteiras dos Estados europeus. Foi criada, então, a Federação Alemã, formada por 35 Estados monárquicos e mais quatro cidades livres. Não acontece a unificação alemã, tão almejada pelos grupos nacionalistas que haviam lutado contra a dominação francesa.
Quando Goethe propõe a idéia de Weltliteratur em 1827, não existia, portanto, a nação alemã e os estados alemães viviam sob o jugo da restauração. Em todos eles imperava a censura prévia a publicações e à imprensa. No panorama literário ainda prevalecia, de uma forma geral, o movimento romântico, só que já tendendo ao esgotamento e a formas epigonais.
Weltliteratur (literatura universal)
A idéia de Weltliteratur é apresentada programaticamente e exposta em cartas, comentários e resenhas exatamente entre os anos de 1827 e 1830, ou seja, quando Goethe se empenha em concluir a segunda parte da tragédia do Fausto. Assim ele se expressa em conversa com seu secretário Johann Peter Eckermann: “Cada vez mais me convenço (…) de que a poesia é uma propriedade comum à humanidade, que por toda a parte e em todas as épocas surge em centenas e centenas de criaturas. (…) Apraz-me por isso observar outras nações e sugiro a cada um que faça o mesmo. A literatura nacional não significa grande coisa, a época é da literatura mundial e todos nós devemos contribuir para apressar o surgimento dessa época.”(31 de janeiro de 1827). É também nesse mesmo sentido que Karl Marx e Friedrich Engels utilizam o conceito de Weltliteratur no Manifesto do Partido Comunista de 1848. Os autores destacam que pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Com isso, o isolamento entre as nações a auto-suficiência dão lugar à circulação universal tanto dos produtos materiais quanto dos intelectuais. Esses últimos passam a ser assim de domínio geral. Esse quadro de interdepedência e de circulação universal impossibilita de um lado a manutenção do isolamento das nações e de outro faz surgir das muitas literaturas nacionais uma literatura mundial.
A própria obra de Goethe como um todo plasma de forma magistral um amálgama de literaturas diversas e de épocas diferentes. Como exemplo cito aqui não só as duas partes da tragédia do Fausto como também a obra lírica West-östlicher Divan (O divã ocidental-oriental) de 1819, na qual Goethe dialoga com a obra lírica do poeta persa Hafis (1326-1390). O conceito goetheano de Weltliteratur contudo é fruto de suas reflexões no contexto da publicação organizada por ele Über Kunst und Althertum (Sobre arte e antigüidade), cujo primeiro número vem a lume em 1816. Nessa revista, Goethe contribui enormemente para a divulgação de literaturas estrangeiras, abarcando em seu espectro de interesses as literaturas do Oriente Médio, da Índia e do Extremo Oriente, da Antigüidade clássica e da Idade Média, assim como as literaturas contemporâneas de outras nações européias. Goethe também traduziu obras literárias dos idiomas mais difundidos na Europa (grego, latim, francês, inglês e espanhol), além de se ocupar em divulgar através de traduções – não diretamente nesses casos – o Corão, a poesia clássica árabe, a poesia sérvia, as canções da Boêmia e a Edas (tradições mitológicas e lendárias dos antigos povos escandinavos). Mas a idéia de que a poesia é propriedade comum da humanidade tem seu início seguramente nos primeiros anos de produção poética goetheana, ou seja, na época denominada pela historiografia literária de Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), durante a qual Goethe esteve em contato profícuo com Johann Gottfried Herder (1744-1803). A partir de 1766, Herder passou décadas compilando, traduzindo e divulgando poemas e canções de várias literaturas européias.
Características principais do conceito de Weltliteratur
Depreende-se de suas reflexões expostas em cartas, conversas e resenhas que Goethe entende Weliteratur não no sentido de um cânone literário de obras exemplares e muito menos no sentido de um sumário quantitativo sempre crescente de obras literárias de todas as épocas e lugares. Goethe denomina de Weltliteratur o que atualmente chamamos de intercâmbio e comunicação intercultural, nos quais se manifestaria o que há em comum entre as diferentes culturas, sem que se apague a individualidade que se baseia em diferenças nacionais. No sentido prático, Weltliteratur se refere à tarefa dos escritores e poetas, que devem fomentar o intercâmbio intelectual através de traduções, resenhas, discussões e encontros pessoais. A idéia da universalidade da poesia combina-se no conceito goetheano de Weltliteratur à necessidade da prática da tolerância entre os povos, da aceitação das diferenças culturais e da ênfase no universalmente humano. Além disso, correlaciona-se também aos princípios humanistas e de formação da humanidade (Bildung der Menschheit) provenientes da Aufklärung (Iluminismo). Não se baseia em idéias de homogeneização cultural e muito menos em noções particularistas, sectárias, de uma suposta superiodade cultural de determinados povos ou em ideais patrióticos. Pelo contrário.
Para Goethe, já desde a época do assim chamado Classicismo de Weimar, ou melhor, de sua coalizão estética com Schiller a partir de 1794 e até a morte deste em 1805, não se tratava de valorizar o estritamente nacional em detrimento do universal. O próprio Classicismo de Weimar, além de alicerçar a Antigüidade clássica como paradigma estético, trazia em seu bojo ideais de humanidade e a reivindicação da Bildung (formação humana) como tarefa necessária na história da espécie humana, já presente em vários pensadores da Aufklärung, e também em Herder. Tal reivindicação, que faz par com as idéias de educação estética de Schiller como forma de aperfeiçoamento do ser humano através da arte, constitui um ideal utópico por excelência que era contraposto à própria época – fins do século 18 e inicio do século 19 – marcada não só pelo desenrolar dos acontecimentos deflagrados pela Revolução francesa como também pelo florescimento na Alemanha dos ideias nacionalistas no contexto das guerras e invasões napoleônicas. O repúdio ao patriotismo caracteriza tanto os ideais estéticos da época clássica como as reflexões de Goethe em torno da Weltliteratur.
Contraposição ao Romantismo alemão
Apesar de se manter fiel ao paradigma da Antigüidade clássica como modelo atemporal de perfeição e beleza, Goethe ao menos a partir de 1805, como se evidencia em seu texto Winckelmann und sein Jahrhundert (Winckelmann e seu século), no qual ele faz uma retrospectiva do legado wickelmanniano em relação a sua própria estética, está ciente de que o Classicismo pertence inexoravelmente ao passado. A própria criação da revista Kunst und Althertum caracteriza o empenho de Goethe em se apropriar e se aproximar da produção romântica de seu tempo, assim como daquela da Idade Média alemã, tão cara aos românticos. Apesar dessa aproximação, Goethe manifesta de forma cabal um certo distanciamento e preconceito em relação à literatura alemã de sua época, na qual ele condena, como já fizera nos anos de convivência intensa com Schiller, os aspectos de introspecção romântica, o subjetivismo extremado e a exacerbação do sentimentalismo.
A ausência de conexão com o mundo e com a sociedade de um modo geral é o que Goethe mais deplora na produção romântica alemã de seu tempo. Além disso, Goethe está convicto de que a época das desavenças entre classicismo e romantismo, como ele mesmo expõe em conversa com Eckermann em 21 de março de 1830, deve ser superada. Mas ao contrário de seus contemporâneos românticos, Goethe acredita que o próprio romantismo com suas características nacionalistas e particularistas também pertence ao passado e deve ser suplantado com a construção de uma Weltliteratur. Exatamente por estar permanentemente de olhos voltados para a produção literária européia de seu tempo, assim como para as mudanças políticas e econômicas decorrentes do comércio mundial, Goethe, a partir de sua pequena Weimar – inscrustada num grão-ducado sem importância política -, consegue abarcar um horizonte muito mais amplo que seus contemporâneos.
Em suas últimas manifestações sobre o conceito de Weltliteratur, Goethe constata que a idéia da literatura universal é não só uma tendência em andamento, mas também uma tarefa para as gerações atuais e vindouras. Ainda que consciente do caráter utópico de sua idéia, Goethe não se cansou até o fim da vida de exortar os poetas de seu tempo a perseguirem o ideal da construção de uma Weltliteratur, na qual predominaria o universalmente humano e não as literaturas voltadas para o culto do nacional.
Izabela Maria Furtado Kestler é doutora em Literatura Alemã pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha) e professora da UFRJ
(4) Comentários
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Gostei da forma utilizada demonstrar a vida da cultura alemã.
A última parte do texto demonstra claramente o que eu já havia lido uma vez sobre a opinião do Goethe em relação ao seu clássico Os Sofrimentos do Jovem Werther. Mais pro fim da vida Goethe começou a renunciar e repudiar os valores do romance epistolar e do Romantismo em geral e lamentar que a vida toda ele ficou sempre associado com Werther, um escritor assombrado pelos fantasmas do seu passado literário.
Continuo a pensar que a Weltliteratur tem caráter cosmopolita, eurocêntrico.
Muito obrigado pelo esclarecedor artigo.
Cumprimentos
Mário Santos