Malattia dei sentimenti

Malattia dei sentimenti

Seymour Chatman, um dos maiores pensadores da obra do cineasta italiano, fala sobre a “Doença dos sentimentos” que marca a “tetralogia”

 

Como ocorreu com muitos jovens do mundo todo nos anos 1960, os filmes de Michelangelo Antonioni viraram também a cabeça do norte-americano Seymour Chatman. Mas, em seu caso, o impacto foi tão grande que ele decidiu transformar o cineasta italiano no foco de sua carreira acadêmica.

Professor emérito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e famoso por seus livros sobre a estrutura narrativa no cinema e na literatura, Chatman é o autor de Antonioni, ou a superfície do mundo (University of California Press, 1985), uma das principais obras de referência em inglês sobre o cineasta.

Além desse livro, Chatman realizou uma série de estudos sobre o diretor italiano e, no ano passado, lançou, pela Editora Taschen, Michelangelo Antonioni – A filmografia completa, belo volume com uma análise detalhada de cada filme do diretor e fotos inéditas de seu arquivo pessoal.

Esse acesso exclusivo é uma prova da confiança de Antonioni em Chatman. Depois de descobrir a obra do cineasta nos anos 60 (primeiro, com A aventura, depois com Blow up e Zabriskie point), o professor americano teve a chance de conhecer seu ídolo pessoalmente em 1975, quando este apresentou Passageiro: Profissão repórter na Universidade da Califórnia.

Em 1981, Chatman entrevistou o cineasta em sua casa em Roma e aproveitou a viagem para ver os filmes dele que ainda não conhecia na Scuola Sperimentale di Cinematografia – o que seria fundamental para, mais tarde, escrever Antonioni, ou a superfície do mundo. 

Com o tempo, os dois se tornaram próximos. Chatman presidiu uma cerimônia em que a Universidade da Califórnia homenageou Antonioni por sua carreira. E o professor recebeu um Emmy em nome do cineasta em Los Angeles, em 1995, quando este não teve condições de saúde para viajar.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail, Chatman discorre sobre diferentes passagens da carreira de Antonioni, com destaque para A aventura, A noite, O eclipse e Deserto vermelho – que, em sua opinião, são marcos do modernismo no cinema e formam uma tetralogia sobre a “malattia dei sentimenti” (a doença dos sentimentos).

Chatman também fala sobre o início neo-realista da carreira de Antonioni, em filmes como o curta Gente del Po e o longa de estréia Cronaca di un amore, e conta que o cineasta lhe confessou certa vez ter ingressado no cinema como uma forma de ascensão social.

CULT – Qual foi a influência do neo-realismo no começo da carreira de Antonioni, especialmente em curtas como Gente del Po? Como se deu a transição do legado de Rosselini para um projeto pessoal de cinema em filmes posteriores, como Cronaca di un amore, As amigas e O grito?
Seymour Chatman –
Gente del Po é obviamente um filme neo-realista em seu veio mais tradicional, que usa um estilo banal de documentário e evoca o cotidiano de pessoas de meios modestos. Seu primeiro filme de ficção, Cronaca di un amore, é neo-realista em outro sentido, como integrante de um segundo estágio no movimento. A ênfase já não é no sofrimento dos pobres e oprimidos, e sim nos problemas nascidos da ascensão de uma nova classe enriquecida do norte da Itália, particularmente nas tensões emocionais de uma jovem recém-casada com um antigo amante que não foi bem-sucedido financeiramente. Essa tensão voltaria a aparecer em filmes posteriores dos anos 50, como As amigas e O grito – o primeiro, sob a perspectiva de uma jovem trabalhadora que se “deu bem” nos negócios. De certa forma, As amigas é o oposto de Cronaca, ao inverter os papéis: a heroína é atraída por um jovem de classe mais baixa (esses filmes são os mais próximos dos sentimentos de Antonioni na época: ele me confessou certa vez, com desgosto, que entrou para o cinema porque queria ficar rico). O grito volta a um herói da classe operária, mas o tema é diferente: aqui o herói é simplesmente incapaz de entender seu infortúnio quando sua antiga amante termina a relação abruptamente.

CULT – O senhor acredita que A aventura, A noite e O eclipse formam uma trilogia? Por quê? De que forma esses filmes dialogam ou não entre si?
S. C. –
Eu acredito que os três filmes têm relações entre si e podem ser considerados uma trilogia – ou, com Deserto vermelho, uma tetralogia. Apesar de os personagens serem diferentes e de não haver conexão entre as tramas, eles formam um grupo coesivo tematicamente, todos se voltando para o que Antonioni chamou de “malattia dei sentimenti” (a doença dos sentimentos), algo que ele observou na Itália dos anos 1960. Cada um deles trata de um conflito que surge quando homens e mulheres tentam dar sentido a sua relação amorosa – e falham.

CULT – Qual é a importância dessa trilogia para o surgimento do cinema moderno? Quais são as inovações de tema e estilo que eles trouxeram e sua influência sobre uma nova geração de cineastas?
S. C. –
Esses três, ou quatro filmes, são fundamentais para a evolução do cinema moderno, tanto no tema quanto na forma. Tematicamente, ao lado de Ingmar Bergman e Alain Resnais, Antonioni ajudou o cinema a amadurecer e a alcançar perspectivas morais e psicológicas tão complexas quanto aquelas que caracterizam a ficção modernista de Joyce, Proust, Faulker. Certamente, todos os cineastas americanos de uma geração mais jovem – nomes como Scorsese, Coppola, Altman etc. – reconhecem uma dívida com Antonioni. No campo da forma, a contribuição de Antonioni é ainda maior. Ele é um magnífico artista visual, profundamente arraigado na tradição da pintura modernista, da escultura, da arquitetura e do planejamento urbano. Particularmente brilhante, por exemplo, é a maneira com que ele relaciona os personagens de A noite e O eclipse com o ambiente urbano que os cerca e, de certa forma, os engole.

CULT – De que forma os protagonistas desses filmes se afastam dos heróis do cinema clássico?
S. C. –
Obviamente, Antonioni não pensa em termos de mocinhos e vilões. Cada personagem é um amálgama irregular dos dois. Nós somos incitados, como na boa ficção moderna, a contemplar a complexidade das motivações e dos desejos humanos. Como eu escrevi no meu livro de 1985, quanto mais olhamos para Anna, Sandro, e Lidia, e Giuliana, Corrado, Thomas e David Locke, mais opacos eles parecem. Mas essa opacidade é familiar. Ela nos lembra de como mesmo um rosto conhecido (da amante, do filho, do amigo) pode ter uma expressão sem qualquer relação com aquilo que achamos que sabemos sobre a pessoa por trás dele.

CULT – Os filmes de Antonioni realizados nos anos 1980 e os mais recentes não foram bem recebidos pela crítica e pelo público. Isso reflete um cansaço de sua obra (agravado por seus problemas de saúde) ou um desinteresse crescente por um cinema mais contemplativo?
S. C. –
Com a exceção de Identificação de uma mulher, seu trabalho está realmente em declínio, o que é perfeitamente compreensível. É um milagre que ele tenha sido capaz de fazer novos filmes e um testemunho do empenho de outras pessoas, como Wim Wenders e Enrica, mulher de Antonioni.

CULT – Alguns críticos agrupam Blow up, Zabriskie point e Passageiro: Profissão repórter como uma trilogia sobre a identidade. O senhor concorda com essa definição? Como esses três filmes ampliam o repertório de inovações da trilogia anterior?
S. C. –
Não, eu não os vejo como uma trilogia, porque cada um trata de uma questão diferente. Blow up foi o primeiro filme verdadeiramente internacional de Antonioni. Como A aventura, é uma espécie de “whodunit” (filme em que a busca pelo autor de um crime é seu ponto central), mas, ao contrário do antigo, isso se transforma em uma questão filosófica obscura. Muitos espectadores poderão vê-lo como um filme noir, mas ele claramente faz a pergunta: “Qual é a natureza da realidade visual?”. Como nas pinturas de seu amigo, as ampliações do fotógrafo levantam mais perguntas do que as respondem. E o processo – como uma barganha faustiana que Thomas faz com sua arte – não está desprovido de riscos para o artista em si. Como a bola de tênis imaginária que ele finge atirar, Thomas desaparece no fim. Antonioni disse que essa era sua assinatura final para o filme. Zabriskie point, apesar de ser um filme visualmente bonito, não foi bem-sucedido no campo narrativo ou temático. Apesar de sua tentativa de fazer um manifesto político radical, Antonioni foi incapaz de realizar o filme de forma a passar ao espectador qualquer senso de profundidade. Parte do problema foi o desentendimento entre o diretor e Hollywood, em particular com os sindicatos trabalhistas. O filme também sofre com a pobreza das atuações, um problema agravado pela insistência de Antonioni em usar atores amadores. Os resultados são muito diferentes de seus outros filmes com interpretações brilhantes dos anos 60. O Passageiro: Profissão repórter foi muito mais bem-sucedido. Antonioni conseguiu um desempenho magnífico de Jack Nicholson. Ele combinou as belezas do deserto e de uma variada geografia (Londres, Barcelona, Espanha mediterrânea) com outra meditação temática profunda, dessa vez sobre a relação entre identidade e destino. É brilhante o desfecho do filme, em que a câmera é literalmente colocada em uma dança da morte fora do quarto em que o personagem de Nicholson é assassinado.

Ricardo Calil
Jornalista

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