Crenças em ação

Crenças em ação

O brasilianista Kenneth Maxwell acredita ser necessário aceitar o fato de que “na democracia, inumeráveis interesses estão representados, incluindo os daqueles que simplesmente não querem mudanças”

Todo brasilianista carrega um quê de lusitanista, necessaria-mente. O brasilianista britânico Kenneth Maxwell interessou-se primeiro pela história colonial portuguesa no programa de pós-graduação da Universidade Princeton, EUA, na década de 1960. A moda brasilianista da época pendia para os estudos de temas recentes, como a modernização. Pesquisas sobre o período colonial eram raras. Nadando contra a corrente, Maxwell descobriu na Biblioteca Nacional, no Rio, mais de 30 caixas intocadas contendo documentos fiscais dos tempos da Inconfidência Mineira, sementes para o seu A devassa da devassa.

Sua compreensão inusitada da Inconfidência o levou a estudos sobre o êthos colonialista português do século 18. Marquês de Pombal – Paradoxo do Iluminismo (ed. Paz e Terra) reflete essa fase. Abriu, assim, possibilidades para o entendimento das relações posteriores entre Brasil, Portugal e África. Em 2004, aos 63 anos, Kenneth Maxwell, nascido em Somerset, Reino Unido, é pesquisador do David Rockefeller Center for Latin American Studies da Universidade Harvard. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail e por telefone, ele expõe as “ambigüidades” da democracia brasileira.

CULT – O Brasil não tem uma longa trajetória de vivência democrática ininterrupta. A democracia no Brasil pode ser vista como um fato consumado? Ela é plena ou precária?
Kenneth Maxwell –
Não acho que a democracia no Brasil seja precária. Nem se fala mais em golpe militar, por exemplo. Eleições têm ocorrido com ampla participação dos eleitores. A sociedade civil está forte. A imprensa tem voz. Contudo, é preciso ver se o sistema político está aberto aos cidadãos no dia-a-dia. Isso é uma outra coisa. Instituições, obviamente, permanecem vulneráveis à corrupção e às manipulações de grupos de interesses específicos. A prestação de serviços para as pessoas continua ineficaz e lenta. Os problemas de exclusão social e insegurança pessoal são enormes. Mas eles não são exclusivos dos brasileiros. A violência nas ruas é muito maior na África do Sul, por exemplo. O Brasil não enfrenta terrorismos domésticos e internacionais (pelo menos até agora). E corrupção não é invenção dos latino-americanos. Basta retrocedermos até a história da cidade de Chicago para aceitarmos isso.

CULT – O que Luiz Inácio Lula da Silva significa para o processo democrático brasileiro?
K.M. –
Lula é o que ele é. Não precisa fingir ser do povo porque ele é um sujeito do povo. Ele é um produto genuíno. Isso o ajuda a governar? Até certo ponto acho que ajuda. É realmente importante compreender como a sociedade funciona tendo estado do lado de fora, vendo-a com os olhos de fora, interrogando-a nas ruas. Muitos dos aspectos da personalidade e do discurso de Lula que irritam as elites são os que o habilitam a difundir valores amplamente. Mas fazia anos ele não era protagonista nem dentro do sistema sindical nem dentro do sistema político cotidiano. Particularmente, não vejo nenhuma contradição nisso. Na verdade, até acho que é um sinal de solidez. Também não vejo nenhum problema com o fato de que ele aproveita a vida e delega autoridade. Todo bom líder precisa fazer isso. Líderes eficientes se concentram no que podem atingir, pragmaticamente, enquanto abrem o foco para os grandes temas. Lula tem feito isso.

CULT – O presidente brasileiro foi acusado de autori-tarismo ao menos em duas ocasiões, como no episódio (reconsiderado) de cancelamento do visto do correspondente do The New York Times, Larry Rother, e no encaminhamento do projeto de um Conselho Federal de Jornalismo. Essas e outras atitudes são sintomas de autoritarismo?
K.M. –
Para ficar nos dois exemplos que você deu, acho que ambos foram um erro. Não estou certo sobre quanto disso é autoritarismo (que certamente existe em alguns setores do Partido dos Trabalhadores) ou parte de uma recorrente e previsível “insegurança nacionalística” brasileira. O Brasil e os brasileiros precisam tomar mais cuidado para não cair nessas armadilhas voluntárias. O Brasil é um país em desenvolvimento e precisa aprender a não reagir excessivamente contra insultos e críticas, para não acabar dando um tiro no próprio pé.

CULT – No início da década de 1980, o restabelecimento da democracia no Brasil era entendido como um tipo de panacéia. Mas o país continua desafiado por problemas sociais muito básicos. Em certo sentido, nossa democracia falhou?
K.M. –
Dentro de uma democracia, muitos interesses estão representados, incluindo os daqueles que simplesmente não querem mudanças. O Brasil tem um enorme e complicado sistema político. Não dá para esperar que tudo se mova rapidamente. A maioria das medidas e das decisões exige negociações, compromissos, acordos.

CULT – Existe uma relação intrínseca entre democracia e liberalismo econômico?
K.M. –
Não, não acho que o Estado possa – ou deva – se retrair totalmente. Há muita dissimulação e muita hipocrisia nisso tudo.

CULT – E as relações entre esses dois conceitos?
K.M. –
Lembro-me de um encontro no Hotel Waldorf Astoria, em Nova York, no qual um alto executivo do Federal Reserve [o Banco Central dos EUA] falava para um público de administradores latino-americanos e pregava ardentemente o mercado livre. Levantei a mão e disse que, naquela manhã, eu havia tomado um trem metropolitano para chegar até aquele evento. Uma viagem de cerca de 160 quilômetros que me custara US$ 8,50. Na semana anterior, eu havia feito uma viagem similar no Reino Unido, que me custara quase US$ 120. O sistema ferroviário inglês tinha sido pri-vatizado pela Sra. [Margareth] Thatcher.  Mas esse sistema continuava pesadamente subsidiado, como de fato deveria estar, já que quanto mais usuários de trens houver, menos poluição e congestionamentos nas cidades. Também apontei que muitos nova-iorquinos moravam em apartamentos alugados por valores preestabelecidos. São os stabilized apartments, nos quais o locador só pode aumentar o preço do aluguel anualmente por um per-centual acordado e dentro do permitido pela cidade de Nova York. É uma importante proteção para os inquilinos contra aumentos absurdos. Esse, aliás, foi um dos fatores que fizeram de Nova York uma cidade vibrante e diversificada.

CULT – O que o sujeito do Federal Reserve respondeu?
K.M. –
Sugeriu que o prefeito de Nova York também deveria tomar as mesmas medidas de mercado livre sugeridas para os latino-americanos. Insistente, perguntei: por acaso é o prefeito que aumenta o preço das tarifas dos trens metropolitanos e elimina os stabilized apartments? Desnecessário dizer que não fui convidado para o segundo encontro.

CULT – No Brasil, hoje, estamos diante da necessidade de um “projeto nacional”.
K.M. –
Incluir pessoas me parece ser um projeto nacional, sim – não um projeto de esquerda ou de direita, e sobre isso há consenso suficiente no Brasil depois das amargas experiências e fracassos do passado. O interessante em relação ao Brasil, hoje, é que, diferentemente da Vene-zuela, o governo Lula tem evitado a armadilha populista, pelo menos até o momento. Significa um enorme passo adiante, com impactos na região como um todo. Claro, isso envolve fazer o sistema capitalista funcionar para a maioria. Implica um efetivo papel regulatório por parte do Estado e muita vigilância democrática.

CULT – Winston Churchill dizia que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras. José Saramago acha que nenhuma nação deveria aceitar a demo-cracia apenas como “a forma de governo menos pior”. Ambas idéias parecem reforçar um caráter ambíguo da democracia. O que o senhor acha?
K.M. –
Deixe-me ver. Saramago continua um comunista. E creio que nós já aprendemos claramente a lição principal do século 20. A lição de que aqueles que nos impusessem visões utópicas se arriscariam a criar campos de concentração não importa onde. Sinceramente? Prefiro a ambigüidade.

CULT – Em termos de comportamento político, o que os portugueses legaram (de melhor e de pior) ao Brasil?
K.M.
– Acho que o pior legado dos portugueses no Brasil é a burocracia; o melhor, a modéstia.

Sergio Vilas Boas
jornalista, escritor e professor universitário. Autor de Os estrangeiros do trem N (Prêmio Jabuti de reportagem 1998) e Perfis, dentre outros livros. Editor do textovivo.com.br

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