As guerras de Shakespeare
Walnice Nogueira Galvão
É difícil aquilatar a onipresença de Shakespeare em seu país. Alimenta uma tradição de estudos que é, de longe, a maior da língua, chegando a centenas de milhares de títulos, entre livros e edições especiais. Sustenta um teatro que é incomparável em excelência, multiplicado em inúmeras casas e constituindo escolas para atores com quem ninguém disputa a posição de melhor do mundo. E não é a menor de suas virtudes a formação de um público exigente, de mente alerta e ouvido afinado.
Repercussões chegam até o cinema, e quando atrizes como Helen Mirren se destacam, não se pode alegar ignorância de sua proveniência: vêm do tirocínio shakespeariano.
Também há repercussões de outra ordem. O ator Alec Guinness, habituado à altitude estética de seus papéis no palco, ao encerrar a primeira trilogia de Guerra nas Estrelas pediu ao diretor que matasse seu personagem Obi-wan Kenobi.
Embora fosse grato pelo trabalho que lhe dava independência econômica, não aguentava mais proferir falas de tal inanidade, como confessa na autobiografia.
Shakespeare é encenado e reencenado todos os anos na Inglaterra, e ninguém discute a necessidade dessa dramaturgia. Espectadores acorrem de todos os cantos e lotam as salas. Quando chega o verão, os gramados das universidades acolhem montagens estudantis por toda parte. Conhecer de cor o enredo ou já saber quem é o assassino deixa de ser problema, pois não é o ineditismo das peripécias que atrai os fãs.
Atualização
Este As Guerras de Shakespeare, de Ron Rosenbaum, se não é para todos, ao menos é para bem mais do que o punhado de leitores que tais livros atingem.
Trata-se de uma vasta reportagem, em que o repórter, diplomado em letras por Yale e tornado jornalista, monta o panteão dos shakespearianos contemporâneos, entrevistando todo estudioso ou profissional de artes cênicas a quem teve acesso.
Essa tomada de partido acarreta duas linhas de força, e não da menor valia. A primeira opera uma boa atualização do campo, num balanço do que se tem feito ultimamente: não “o que se faz hoje”, porque as pesquisas consomem décadas e vidas inteiras.
A segunda, antecipando as críticas de falta de aprofundamento, desce do pedestal e de fato aumenta a familiaridade do leitor com o bardo.
Em decorrência, extravasa do texto literário acrescentando à discussão filológica e estética as encenações e os filmes, o que, abominação para os puristas, não deixa de ser estimulante e novo.
Pois foi justamente a legendária encenação de Sonho de uma Noite de Verão pela batuta de Peter Brook, ele também o mais notável diretor de Shakespeare das últimas décadas, que forneceu a epifania, ou a “experiência transformadora” que motivou esse longo trabalho de mais de 700 páginas a que o autor se dedicou por sete anos.
Deveu-se a oportunidade à Royal Shakespeare Company, em sua sede em Stratford-on-Avon, berço natal do bardo e onde sua casa permanece aberta a visitação. Infelizmente, está fora de nosso alcance aferir a justeza da homenagem, porque Peter Brook só começou a filmar suas montagens mais tarde.
A partir dali, o autor saiu à cata da “experiência transformadora” de outras pessoas, transcrevendo-as no livro.
Esclarecido esse ponto, podemos entender o conjunto da narrativa como algo que se desenrola sob o influxo de uma tendência, com certas ressalvas, que surgiu na historiografia: a ego-história, na qual o narrador desafia a tão discutível objetividade, para imiscuir-se naquilo que está narrando e que conhece em primeira mão.
Como eixo e como o título promete, o livro seleciona algumas das principais querelas relativas a Shakespeare. Menos, Deus seja louvado, as biográficas, que já renderam muitas páginas sensacionalistas: se ele existiu ou não; se foi Francis Bacon ou algum conde, ou até mesmo a rainha Elizabeth I, quem escreveu sua obra. Essas são descartadas já nas primeiras páginas.
Para cada querela o autor entrevista um ou vários especialistas. Visita assim os quatro Hamlets e os três Lears, que não são meras variantes, mas de fato versões com trechos discordantes. Variantes são as últimas palavras do rei Lear, ao morrer abraçado à filha Cordélia agonizante.
Nesse caso, há duas variantes e o trecho é considerado dos mais altos de toda a obra. Não deixa passar a bizarra contribuição do Processo dos Peruqueiros, em que o bardo, embora testemunha secundária, tem suas palavras transcritas num documento jurídico incontestável.
Quanto a documentos, analisa ainda a descoberta tardia da Elegia Fúnebre, de qualidade duvidosa. Vai investigar a delicada questão dos textos em que, como sustentam alguns, Shakespeare foi revisor de si mesmo.
À falta dos originais, submete à dissecação o Bom e o Mau Quarto, anteriores ao Bom e ao Mau Folio, denominados conforme o tamanho da página em que primeiro foram impressos. Nenhum de total confiança: uma das hipóteses, não comprovável, é que o próprio Shakespeare teria corrigido a passagem do Quarto para o Folio, em algumas peças.
Discute ainda a fisicalidade do amor e a nítida inclinação para o tema do perdão nas peças finais.
Dentre os casos mais sibilinos, os grafológicos, oferece-nos o exame da Mão D, ou seja, a caligrafia do poeta, assim denominada porque se encontra num manuscrito a quatro mãos (A, B, C, D), em que a última é a ele atribuída.
Ademais, como ninguém ignora, só existem seis assinaturas autênticas de Shakespeare, e são diferentes entre si. Nesse roteiro, cabe a discussão da conveniência ou não de manter a grafia original nas reimpressões.
Performance
Ponto crucial, de que não abre mão o clássico diretor Peter Hall, fundador da Royal Shakespeare Company, é a pausa imperativa no final do pentâmetro iâmbico de cinco pés e dez sílabas. A violação da pausa como que empastela o verso, que deixa de ser perceptível ao ouvido e que é dos feitos estéticos mais impressionantes de Shakespeare.
Numa obra para teatro, é claro que o tema do desempenho acaba por vir à baila, e cabe aqui um debate sobre quais seriam os maiores atores shakespearianos, desde os do passado remoto, inclusive ele próprio, até os mais recentes.
Dada a fugacidade da encenação no palco, que no máximo pode ser perenizada em vídeo, nosso autor vai se restringir ao cinema, escolhendo quatro filmes.
Em primeiro lugar, o Falstaff de Orson Welles, no filme Badaladas à Meia-noite, resultado da fusão das duas partes de Henrique IV, em que o personagem aparece. Depois vêm o Ricardo III de Lawrence Olivier e o Rei Lear de Paul Scofield, dirigido por Peter Brook.
Até aqui, nenhuma divergência. A surpresa é a inclusão de Richard Burton como Hamlet, ocasião em que foi dirigido no palco por John Gielgud, que reservou para si o Fantasma. Quanto a este último, é de estranhar que fique de fora: a voz de ouro e a dicção impecável ao escandir o pentâmetro iâmbico o alçam ao trono real dos atores shakespearianos.
Se for permitido dissentir em matéria tão excelsa, recomenda-se substituir Burton por outra performance de Orson Welles, seu admirável Macbeth. E, de Gielgud, seria confrangedor escolher um só: pouco frequente em filmes, há o registro de uma encenação especial de A Tempestade em que fez todos os papéis.
De qualquer modo, o leitor agradece, porque tem acesso em DVD a esse elenco de obras-primas.
Era fatal que, ao longo de quatro séculos, tal dramaturgia se tornasse cada vez mais rarefeita e erudita. Por isso, a oportuna reconstrução em 1997 do Globe Theater londrino, em que Shakespeare atuava, veio ampliar nossa percepção da obra e de seu caráter popularesco.
Casa pequena, tem o palco à altura dos olhos do espectador, pois não há assentos na plateia e assiste-se à peça em pé. No edifício de planta octogonal a céu aberto, circundam a plateia os camarotes sobrepostos, mais caros, com bancos e com teto.
Bebia-se cerveja, mastigavam-se castanhas assadas – que os ambulantes vendiam durante o espetáculo – e jogavam-se as cascas nos atores, em meio a grande algazarra, aplausos e apupos.
Tudo isso nos mostra Shakespeare mais vivo que nunca, para nosso deleite.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita de teoria literária e literatura comparada na USP
As Guerras de Shakespeare
Ron Rosenbaum
Trad.: Maria Beatriz de Medina
Record
714 págs.
R$ 82,90
Leia tambémA presença dos animais e sua relação com os homens na obra de Shakespeare são tema do livro de Andreas Höfele Stage, Stake, and Scaffold – Humans and Animals in Shakespeare’s Theatre (Oxford University Press) – algo que pode ser traduzido como “Palco, Estaca e Andaime – Humanos e Animais no Teatro de Shakespeare”.Professor no Instituto de Filologia Inglesa da Universidade de Munique, Höfele analisa algumas de suas principais peças, como Macbeth e Rei Lear, para demonstrar como o dramaturgo inglês discute os limites da humanidade. |