Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo
Marcia Tiburi e Rubens Casara
Os preconceitos não são inúteis. Eles tem uma função importantíssima na economia psíquica do preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos servem na prática para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar certezas incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para mistificar, para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal falso na pessoa do preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de “superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função fundante.
Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um sentido muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida, as culturas, as sociedades, as pessoas, ao parâmetro “superior-inferior”. Preconceitos não funcionam fora de jogos de linguagem que são jogos psíquicos, que produzem algum tipo de compensação psíquica.
Vivemos tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com um vazio do pensamento e um vazio da ação que se resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No sistema de preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto básico do preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas, lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles, conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu próprio medo.
O preconceituoso é, basicamente, um covarde.
Tendo isso em vista, é importante falar de um preconceito que está em voga nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado, pois o lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para muitos. Se podemos falar em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do conhecimento, e de “ignorância populista”, como um uso elitista da ignorância, como duas formas de exercer o poder manipulando o campo do saber, podemos falar também de um ódio à inteligência, do seu apagamento.
Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da “negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil (na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais constantes críticas direcionadas ao candidato Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das eleições municipais contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de que por ser professor não falaria “a linguagem do povo”).
O alto índice de abstenções, votos nulos e brancos (bem como a expressiva votação de políticos que se apresentavam como não-políticos) também é um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o eleitor identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um “saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.
No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores de justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de decidir contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de massa.
Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos típicos de um conservadorismos carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação.
A barbárie está em curso.
(14) Comentários
O preconceito consiste em ideias que não se tem certeza e que levam ao julgamento antecipado de valores sociais ou ocorre uma indução, por meio de cultura de massa, a adoção de pensamentos que reimprime a relação entre pessoas, levando em muitos em casos a práticas de violência. Apesar de estamos em tempos modernos e termos progredido em relação ao nosso senso crítico, pois ganhamos mais espaço para expressar nossas opiniões, ainda a relação na sociedade é desarmoniosa. A exemplo temos a mulher inserida no mercado de trabalho, o homem negro, o homossexual esses são apenas alguns segmentos, mas o preconceito está em diversos setores e remodelar atitudes que foram alimentadas durante ao longo do tempo é uma tarefa que pode levar gerações até se ter uma abertura de outras formas de visões sobre a liberdade individual.
Pois eu acho que é precisamente o contrário. O que está acontecendo neste momento, a partir de uma reação conservadora de setores da sociedade, é uma rejeição a determinada pretensão intelectual que, excluindo todos os que não compartilham de suas conclusões, pretende arrogar-se a qualidade de “superior”, acima do vulgo, por mera autoatribuição.
Esse texto, de uma burrice ímpar, é um exemplo bem típico. Seu pseudo-intelectualismo transparece da primeira à última linha, essa tentativa canhestra e vaidosa, prenhe de vazia afetação, que quer dizer mais ou menos o seguinte: “A verdade é o que estou dizendo; se não concorda com ela você é burro”. Não é preciso muito para perceber onde se esconde a burrice medrosa, onde ela se refugia, por trás, de quilos de adjetivações e julgamentos.
Engraçado que a “articulista” (sejamos generosos, embora ela não tenha esboçado nada que se pareça com um argumento), para defender sua tese, lança mão de exemplos caricatos como Alexandre Frota, Marcelo Crivella. Nenhuma palavra sobre Roger Scruton, Flávio Morgenstern, Ricardo Levy ou, mesmo, Olavo de Carvalho. Este último, há décadas desafia qualquer representante de pensamento de esquerda para algum debate sobre marxismo ou marxismo cultural sem encontrar do outro lado senão indiferença.
O ódio à ciência e ao conhecimento se revela pela recusa de um lado em debater suas convicções, como acontece ao pensamento de esquerda que essa garota defende. O ódio à ciência e ao conhecimento se revela pela recusa de um lado a buscar, na experiência real do insucesso de determinadas políticas públicas, a justificativa para o que defende, apoiando-se tão somente em ideologia e discurso. O ódio à ciência e ao conhecimento revela-se, por fim, no medo que a esquerda tem de debater todas essas coisas com quem de fato defende e inspira o pensamento conservador, pinçando seus adversários entre nulidades intelectuais, alçadas a “representantes” do pensamento conservador apenas porque o apoiam. Seria como se, para atacar a esquerda, os conservadores escolhêssemos debater com suas figuras mais inexpressivas e bobocas, como um Jean Wyllis, um Romário ou, sei lá, uma Márcia Tiburi.
Esperando sentado o dia em que esse debate realmente ocorra, envolvendo quem tenha estatura intelectual para representar ambos os lados. Porque a esquerda nunca enfrenta, só foge, foge e foge, valendo-se desse tipo de “argumentação” (generoso aqui) e escolhendo seus adversários entre os mais fracos.
Desafie Olavo de Carvalho para um debate, Márcia Tiburi.
Maravilhoso !
Tema muito bem desenvolvido e elucidativo..
Parabéns..
O problema ė o que se tá monopolizando são questões polêmicas onde o obscurantismo religioso faz a festa: questão de gênero, aborto, drogas, etc. Transformaram em questão de direita e esquerda para fortalecer o conservadorismo.
Percebe-se claramente o cenário descrito e isso é assustador. ?
Deduzo que Márcia Tiburi é o parâmetro de inteligência?
https://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/no-video-o-ex-presidente-que-odeia-doutores-e-livros-confessa-8216-eu-sou-muito-preguicoso-e-uma-questao-de-habito-8217/amp/
Excelente reflexao! Quanto menos educado e o povo, mais fácil de ser comandado ou manipulado.
Ótimo texto e deveria ser bem mais divulgado!!!Parabéns a Sra. Marcia e Sr.Rubens.
Gostei imensamente de fato a barbárie está em curso e só não vê quem não quer. Ela é arrepiante.
Muito bom. O percentual que detem o candidato a Presidente Bolsonaro e bem uma representação desse anti-intelectualismo.
Trocaria o “Intelectualismo” do texto por Intelectualidade.
Essa reflexão diz tanto do que estamos vivendo no Brasil… realmente, um projeto de desconstrução de uma nação em andamento.
Fernando Cavalcanti, o objetivo do conhecimento não é destruir argumentos. É construir o progresso da humanidade. “Pensamento conservador” não objetiva construir nada. Apenas defender teses ultrapassadas.