Privado: 50 anos entre Deus e o Diabo

Privado: 50 anos entre Deus e o Diabo

Franthiesco Ballerini

O filme já estava praticamente pronto quando os militares depuseram o presidente João Goulart e instauraram uma ditadura militar, em 31 de março de 1964, iniciando uma era de ausência de liberdade de expressão, torturas etc. Mas para a sorte do então jovem cineasta Glauber Rocha, o Ato Institucional Número 5 – que calaria de vez as vozes dissidentes – só viria quatro anos depois. Graças a esse finzinho de liberdade, Deus e o Diabo na Terra do Sol pôde estrear há 50 anos, se transformando no filme mais emblemático do Cinema Novo.

O segundo longa de Glauber – o primeiro fora Barravento (1962) – foi a melhor tradução audiovisual até hoje da proposta de um movimento que, nos congressos de cinema nos anos 1950, deu seus primeiros passos com os filmes de forte influência neorrealista de Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus e Rio Zona Norte) e, posteriormente, com as problemáticas nacionais que tão fortemente foram discutidas pelos cineastas até o final dos anos 1960.

Há 50 anos, Deus e o Diabo na Terra do Sol seria também indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes, onde, três anos depois, Glauber receberia o prêmio da crítica internacional com Terra em transe (1967). Mas embora Terra em transe tenha sido seu filme mais premiado internacionalmente, foi Deus e o Diabo quem melhor traduziu a proposta de um movimento que influencia até hoje cineastas brasileiros, o cinema português e diretores de países de língua portuguesa na África. Seus filmes influenciaram inclusive a nova geração de cineastas dos Estados Unidos – os movie bratz dos anos 1960 que estavam ressuscitando Hollywood, como é o caso de Martin Scorsese, adorador das obras de Glauber a ponto de adquirir os direitos de restauração de três dos seus filmes.

Deus e o Diabo na Terra do Sol iria instaurar para sempre no cinema brasileiro a Estética da Fome, estilo de linguagem, técnica e narrativa que explorava as mazelas do interiorzão do Brasil e suas razões política (coronelismo), religiosa (crítica feroz ao catolicismo), econômica (dependência externa) e cultural (culto à cultura europeia e norte-americana). Tudo seguindo a premissa do Cinema Novo, muito bem definida pelo próprio Glauber na época, que dizia: “Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade (…) nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa (…) nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser compreendido com os grandes problemas de seu tempo; queremos filmes de combate na hora de combate e filmes para construir um patrimônio cultural”. No entanto, apesar de negar influências externas, tanto o filme quanto o movimento foram fortemente influenciados pelas escolhas temáticas, a fotografia e os enquadramentos do Neorrealismo Italiano, bem como pela Política dos Autores dos franceses da Nouvelle Vague – esta também influenciada pelo próprio Cinema Novo, especialmente Jean-Luc Godard, grande admirador de Glauber.

Ao mostrar a seca devastadora do sertão nordestino – embora Glauber tenha filmado no norte de Minas Gerais –, o diretor optou por abrir bem o diafragma da câmera, de modo a “estourar” a luz sobre corpos, chão e objetos. Embora tenha sido “acusado” por parte da imprensa na época de não saber filmar, Glauber na verdade estava cometendo um “exagero de luz” em prol da Estética da Fome. Ao “estourar” na pele dos personagens, a luz do sol contribuía para a principal mensagem de Deus e o Diabo: que naquela terra a miséria era tão grande, a política tão destrutiva, a economia tão fraca, a cultura tão mínima e a religião tão opressora, que quem mandava na sorte dos cidadãos era apenas a luz do sol. Juntava-se à fotografia um roteiro impecável, com uma narrativa dividida em três fases. Na primeira, Manoel (Geraldo Del Rey) tem fé no seu trabalho braçal, acreditando que, ao dividir o gado com o coronel, poderia comprar suas terras e fazer sua própria plantação. Mas o coronel lhe dá um golpe e ele fica sem nada. Perdendo a fé no trabalho, ele e a mulher Rosa (Yoná Magalhães) começam a seguir o messiânico Sebastião (Lidio Silva), numa alusão direta ao Antônio Conselheiro da Revolta de Canudos. Mas a tal terra frutífera prometida por Sebastião nunca chega, então Manoel perde a fé na fé religiosa e transforma-se em cangaceiro. É como se Glauber estivesse montando um paradigma da formação do Brasil e do porquê de alguns optarem pela bandidagem. Quatro décadas depois, Fernando Meirelles vai, de certa forma, apostar novamente nesta premissa em Cidade de Deus, quando então entra em voga o termo Cosmética da Fome, em que, ao contrário da triste e feia fome de Glauber, agora a miséria era estilizada, embelezada, adaptando-se aos novos tempos do audiovisual, com narrativas mais ágeis, imagens com toques publicitários e voltando-se para a problemática dos grandes centros urbanos.

A principal intenção de Glauber Rocha com Deus e o Diabo na Terra do Sol era fazer um filme do povo para o povo, ou seja, retratar a condição da população para que ela mesma criasse consciência das causas – por isso o filme foi promovido com exibições gratuitas em várias cidades do sertão nordestino. No entanto, esta talvez tenha sido sua principal frustração para a vida toda. Praticamente nenhum filme do Cinema Novo foi sucesso de bilheteria. Isso porque, além de focar em temas sérios e negativos – numa época em que a TV ignorava as reais mazelas do Brasil em suas telenovelas –, a linguagem de Deus e o Diabo e dos demais filmes pedia um conhecimento prévio não só de história do Brasil, como referências culturais, cinematográficas. Para frustração de Glauber, quem conseguiu fazer o tal cinema do povo para o povo foram os diretores das chanchadas, subgênero cômico que ele odiava – por conta do roteiro superficial, entre outras razões –, mas que produziu filmes vistos por milhares de pessoas nas grandes cidades, em busca de simples entretenimento nos cinemas.

Apesar disso, não foram as chanchadas que sobreviveram no tempo – embora tenham se metamorfoseado para as atuais comédias do cinema brasileiro –, mas sim o Cinema Novo, exibido e reexibido constantemente em mostras, cinematecas e entre estudantes de artes e comunicação, além de estudado em diversas teses de doutorado no mundo todo, como imagem marcante que o Brasil levou para o resto do planeta.

Mas talvez o maior legado de Deus e o Diabo na Terra do Sol tenha sido jogar o cinema brasileiro à altura do melhor cinema feito no mundo naquele momento. Assim como Roberto Rossellini, que no Neorrealismo Italiano negou um diálogo com as outras formas de expressão artística porque o “cinema se bastava por si só”, elevando-o à condição de arte em pé de igualdade com as demais, Glauber Rocha optou por ignorar as outras artes e virar as costas para Hollywood. Até a trilha musical era de brasileiros (Heitor Villa-Lobos), com letras criadas pelo próprio cineasta. Era o momento de afirmar radicalmente um estilo e uma linguagem tipicamente nacionais, colocando o cinema brasileiro – até então viciado em imitar ou satirizar Hollywood ou enaltecer o cinema europeu – na idade adulta artisticamente. Em pleno século 21, meio século após o lançamento de Deus e o Diabo, documentários e ficções brasileiras no cinema e na televisão não se cansam de referenciar esta forma tão distinta de narrar em audiovisual, que foi introduzida por Glauber e seus colegas cineastas.


Franthiesco Ballerini é jornalista e coordenador geral da Academia
Internacional de Cinema

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