2021, o ano da desesperança
O que sentimos é desespero. Por isso é que talvez estejamos desesperados para voltar a ter esperança (Foto: Giulian Serafim)
Quem se interessa por política costuma acompanhar os lances do xadrez político, os movimentos realizados pelos adversários e o desenrolar da partida, mas nem tanto o mundo de sentimentos, percepções e imaginação que dá sentido e sustentação a tudo isso. Só que os lances que se veem no tabuleiro político só fazem sentido e têm alcance se abaixo da superfície houver um lastro de afetos, crenças e imaginários a que correspondem
Tomemos as emoções, por exemplo. Dentre os grandes sentimentos de que somos capazes, há três que, quando devidamente coletivizados e manipulados, produzem os efeitos mais poderosos na política. Refiro-me ao ódio, ao medo e à esperança. O resto são trocados. A história política do Brasil é a história da alternância do predomínio dos grandes sentimentos.
Vivemos, por exemplo, um longo ciclo de desesperança entre 1984 e 1989, que, por sua vez, se seguira a um intenso ciclo de esperança na restauração da democracia, quando a ditadura militar afundava. Depois veio um período de ultraje moral e repugnância da política, até que começou um novo grande ciclo de esperança por volta de 1994, que durou por uns bons vinte anos.
Até que em 2013 começaram a sabotar a esperança, e toda aquela gente que achava que o futuro podia ser melhor que o presente, abriu mão dessa ideia para “concluir” que o Brasil na verdade era um horror a ser consertado urgentemente.
Em 2014 começou o ciclo do medo e do ódio (medo da volta do PT, ódio ao PT e à política) que dura até hoje, primeiro com mais medo que ódio, depois com mais ódio do que qualquer outra coisa. Um número crescente de pessoas votou com raiva no coração em 2014, 16, 18 e 20. Um número crescente de pessoas passou a se interessar por política, a acompanhá-la e a interagir a partir dela em mídias sociais justamente no grande ciclo dos Oito Anos de Ódio. Para eles, política é faca na bota e pé no peito, furor moral e autoindulgência para bater, assediar e patrulhar o inimigo. Nunca lhes ensinaram que política é compromisso, pontes, projetos e alguma utopia para aquecer o coração da massa.
2021 começou como o ano da desesperança. O ódio é o mais eficiente sentimento político, mas enquanto é excelente em demolição, não é bastante para construir coisa alguma. Em 2021, o país acordou e deu-se conta, desmoralizado, de que ao seu redor é só ruína. Acredito que quando as pessoas começam a perceber que queimaram os navios, destruíram as pontes e demoliram as saídas, é sinal de que o ódio está perdendo a sua mágica, a capacidade de criar a ilusão de que está preparando o terreno para uma grande obra vindoura.
Não vemos andaimes, só
escombros e túmulos.
Estamos exaustos. Já não
é desesperança, é desespero.
Por isso mesmo é que talvez
estejamos, me perdoem o
oximoro, desesperados
para voltar a ter esperança.
Mas como a esperança será possível se a única certeza que a gente tem ao acordar neste país, desde o final de fevereiro, é que, como disse o jornalista Daniel Bramatti, “todos os dias foram o pior dia da pandemia. Até chegar o dia seguinte”. De fato, saímos de pouco mais de mil mortes diárias no dia 26 de fevereiro para chegar a mais de 3 mil óbitos na quarta (17).
E como lembra o professor Celso Rocha de Barros, “estas pessoas estão morrendo de uma doença para a qual já existe vacina. A vacina estava à venda, os presidentes dos outros países compraram-nas, Bolsonaro não comprou”. A Pfizer, por exemplo, se esforçou muito para vender 70 milhões de doses ao governo brasileiro há vários meses, e Bolsonaro, o negacionista, que até a semana passada era antivacinas, recusou-se teatralmente, como se o dinheiro fosse dele e as vidas perdidas fossem da sua família.
Se o Brasil estivesse em uma guerra e a gente tomasse conhecimento de que só hoje três mil dos nossos haviam morrido nas mãos do inimigo, o país certamente estaria consternado e em prantos. E em estado de revolta. E se a gente pensar que amanhã serão mais 3 mil e mais 3 mil depois de manhã, e que o morticínio não tem fim à vista? 3 mil, 4 mil, 5 mil acordarão todos os dias para morrer nas mãos do inimigo. E se o responsável no final das contas pelos massacres, o inimigo, for, de fato, o sujeito que preside o país? O que pensar? O que sentir?
Na fábula que resume o Brasil, a desesperança parece aquela visita desagradável que insiste em nunca mais ir embora. O país é um enredo de como o medo e o ódio nos levaram, depois de um longo ciclo, a ainda mais medo e desespero. Precisamos de alguma esperança a qualquer custo. Mas de onde ela virá?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)