1922, o mundo é aqui, o mundo não é aqui
Que um festival de arte moderna de um fim de semana em um teatro símbolo de uma classe – em uma cidade que mudava o eixo de sua economia de velha formação imperial, de origem escravista e aristocrática, para uma emergente indústria local nacional, com suas massas populares da metrópole, operariado imigrante recente, seu fluxo de novos objetos do futuro, sua velha república em tensão cada vez mais forte com a tradição da exclusão social que mantinha – tenha provocado os choques e comoções que provocou, diz algo de uma certa relação possível do lugar do Brasil no mundo, da sua modernidade e de seu próprio caráter frente a uma modernidade outra, central, algo sempre fora de compasso em relação às nossas próprias formas e processos.
O momento heroico de 1922 foi a apresentação como espetáculo, mas como provocação e choque; como palestra, mas como blague e espanto sobre a própria situação, em um processo sociológico e estético que iria lançar a reflexividade do caso no tempo, de um conjunto de problemas e de formas ainda novas para o lugar; mas, incrivelmente, ao tempo, formas que as vanguardas estéticas europeias vinham produzindo ao longo de todo século 20. Eram os futurismos e os dadaísmos, renomeações de choque do próprio mundo central europeu em plena dissolução, ações que incorporavam como nova tradição inventada os já passados impressionismos, cubismos, atonalidades, versos livres, instantaneidade, fluxos de associação, que tinham raízes na modernidade do século 19 e sua consciência mais radical. Uma modernidade produzida em movimento, do problema da pintura da vida moderna, flores do mal avançadas do quadro de tensões entre representação e transformação social acelerada, catastrófica, iluminações de nova civilização repressora burguesa e de mercado fetichista, como então observou o modernista Walter Benjamin, da grande liberação de forças humanas e técnicas, e da energia de contenção destrutiva da guerra social sempre presente.
Um espaço histórico convulso, que aterrissava aqui, da noite para o dia histórico, através de alguns jovens escritores e intelectuais atentos ao mundo, então o mundo como um outro, que se fazia o mesmo, como um choque festivo. Crise e revolução geral ao redor, que apareceria por aqui como evento, acontecimento social, no duplo sentido do termo, fato histórico e programa, para a metrópole moderna e provinciana travada em um controle político claro, ainda de outra ordem. Um Brasil paulista com traços sociais fundos do velho ruralismo, a ampla formação político econômica colonial escravista, na concepção das raízes do caso descritas como ainda por serem revolucionadas já nos anos 1930 pelo modernista Sérgio Buarque de Holanda. A novíssima metrópole do país que acelerava a sua transformação parecia ainda não ter ouvido falar que o lugar histórico que comprava toda a sua produção mundial, já há muito, passava por outras chaves fortes de representação artística e de ação social. O descompasso entre os mundos era objetivo, concreto e ideológico, um caso do Brasil. E ele tem implicações amplas sobre o entendimento de uma filosofia da história desde a experiência do Brasil. Do mesmo modo, ainda no século 19 Silvio Romero apontara o fim repentino, o salto da noite para o dia, da invasão das ideias novas modernas de então, materialistas, científicas e positivistas, frente o feudalismo secular escravista, monarquista decoroso, espiritualista católico e sua inconsequência reacionária, que ainda não havia sofrido nenhum tipo de abalo até a exata data marcada de 1868… Cem anos mais tarde, como analisou Roberto Schwarz, também o tropicalismo marginal, ou de indústria cultural, de jovens formados na tradição modernista social, pré 1964, tiraria proveito do mesmo salto de atualização estético, teórico e cultural, agora incluindo um inédito e novo salto para o passado modernista local, oswaldiano, em perspectiva crítica própria que sintonizava com a tendência do mundo do tempo, pop, afirmativamente industrial, facilitadora nova da forma mercadoria e da vida liberal de mercado, entre os Beatles e a banda de pífanos, tudo para confrontar, de novo e outra vez, agora de modo ambivalente, o velho atraso brasileiro. No caso o atraso, também, das próprias categorias da esquerda crítica emancipatória dos anos 1950-1960, campo político liquidado na guerra social violenta do golpe militar, que fraturou o processo de integração do país em outra modernidade, de um outro desejo de nação, ligado de outra forma aos anseios de 1922 e 1930. Como disse um jovem gênio daquela história, anterior a 1964, o músico da mediação crítica entre o erudito e o popular Edu Lobo, sobre o advento da música tropicalista de Gil e Caetano em 1967, “diante da apresentação deles, nós imediatamente envelhecemos”… Era um jovem compositor brilhante e comprometido que falava assim, do alto de seus 24 anos – para termos uma pálida ideia do atravessamento destes saltos, descontinuidades e transes do Brasil, sobre a vida e a subjetividade dos homens que estão neles implicados.
Em 1922, na São Paulo da nova féerie industrial e do automóvel, não se sabia um tanto que a Europa sempre sonhada e desejada – da perspectiva do velho desterro imaginário colonial brasileiro – com o seu sistema da problematização das artes, o sentido da técnica formativa do tempo, a simultaneidade, a velocidade, os novos meios de comunicação que ligavam novos sujeitos históricos, as máquinas de máquinas de máquinas, como diria Macunaíma, o próprio movimento popular das massas no espaço da cidade, sua câmera olho e a busca de novos parâmetros de pensamento e forma para a crise da destrutividade universal do capitalismo imperialista de então, existia de fato de forma inteiramente outra do sistema ideológico citadino, local e nacional. O mito nos diz que não se sabia que o eixo do mundo central girava já há muito em outra rotação e produção de nosso conservadorismo de vida besta, de procissões como diversão e velas acessas em vitrines de lojas, passadista codificado, micro burguês agregado, parnasiano parisiense beletrista, pequeno bacharel da própria ascensão social para a auto conservação, mundo que ainda mantinha com a maior facilidade negros e italianos como neo-escravos nas fazendas da riqueza mundial do café, com seus foro kitsch eclético de palacetes aristocráticos de velha e nova falsa nobreza, gente muito pouco afeita a intensidade das tensões sociais gigantesca por democracia, e socialismo, presentes no horizonte.
A guerra total da técnica tinha ocorrido muito longe, o café ia alto, o país continuava sendo de sobremesa, a oligarquia de netos de fazendeiros saquaremas do império, grandes contrabandistas de escravizados do século 19, controlava o Estado e a submissão cultural, enquanto o novo dinheiro da nova indústria italiana da cidade, com suas massas de operários importados de Espanha e Itália, nada queria saber da transformação social e estética, iminentes, do cubismo ao anarquismo comunista, do verso livre à crítica ao terror burguês, em curso, noutro mundo que era o mesmo.
Entre a velha aristocracia da cidade que contava suas vantagens políticas em séculos e o dinheiro novo invertido na indústria, circulava a velha classe média de exigências ordenadas, de bacharéis, homens dependentes cordiais, padres, serviçais políticos, Coelhos Netos, todos bem pactados em fazer avançar o coro maior do conservadorismo, mental e social, a aristocracia do nada, segundo o modernista Paulo Emílio Salles Gomes: o pacto de sobrevivência de pobres, senhores e excluídos, racializante, que fazia da metrópole em ebulição da velocidade um lugar em que a carroça, com seu burro, paralisava mesmo o bonde, o passado atravessava o futuro com toda força. O futurismo dos jovens artistas de São Paulo, mais do que uma consequente fusão política de choque na maquinação do mundo, era em grande parte o escândalo mundano da apresentação do descompasso – um pouco como um Caetano Veloso em ambiente de festival quarenta nos depois verberando com toda a ira de um revolucionário de si mesmo, das novas novidades, para uma plateia satisfeita na indiferença reacionária, que o vaiava: – Vocês não estão entendendo nada, nada, nada…
O caso da semana de arte moderna de 1922 é um estranho caso de nossa formação íntima de atualização repentina, de choque, do descompasso, festivo, orgiástico, ingênuo a respeito do poder total da novidade estética sobre a vida social, de sinalização da lógica de diferenças de potencial permanente e necessária, de um país periférico, formado como Estado e sociedade na tradição colonial escravista longa, seu próprio modo antissocial de produzir capital, com o seu “feudalismo” de mentalidade de senhorio totalitário da porta da fazenda para dentro, atualizado então em novas formas de controle e de decoro na cidade conservadora do Partido Republicano Paulista, frente a um mundo de vínculo necessário, o lugar da realização mundial da economia mundo, o centro da vida capitalista de então, cuja explosão técnica e de guerra da cultura pouco correspondia à ordem local, e sua adaptação à estabilidade social da violência, local. Mas, de novo, um fora que a pautava.
A Europa modernizada da catástrofe universal, que oscilava, ainda antes da formulação do surrealismo como último instantâneo da inteligência europeia, entre o futurismo hiper-positivo de amor à nova vida da máquina e com ela o destemor frente ao ato total da guerra, em um aceleracionismo do terror próprio àquele tempo, que desaguaria mesmo na engenharia social fascista, nacionalista e de Estado, tecno-guerreira, e, noutra direção, o dadaísmo anarquista negativo dos setores artísticos e de classe média independente de poderes, que via de frente, como real, a catástrofe universal, deles, da Primeira Guerra “Mundial”, a perspectiva técnica de extermínio geral, como dizia o modernista Freud, recém mal acabada e acabando por lá, da noite para o dia, com impérios seculares dos equilíbrios de poderes, em 1918.
Se o mundo central havia se convulsionado no choque entre as nações imperialistas da guerra total, para evitar a solução das guerras sociais socializantes generalizadas permanentemente presentes, a sua cultura, de um lado, reconhecia a nova maquinação do mundo, das grandes intensidades da destruição como criação e do fim do tempo da experiência, e, de outro, o anarquismo estético radicalmente antiburguês, antiguerra, anti-humanista, anti-imperialista e, portanto, anticapitalista. Noutro mundo, da ordem estética existencial brasileira, paulista, ainda era o coro geral de conservação dos vínculos lentos entre a baixa classe média, que existia na dependência, e a alta oligarquia, última floração de aristocracia ainda ligada ao século da monarquia escravista, em seu pacto ideológico de farsa, de ordem e progresso, de classe e para a classe.
Os três dias da Semana de Arte Moderna de 1922 tentavam colocar a cidade, e o país, em contato com aquele processo global, que se expressava através das formas da arte nova. Mundo, conservadorismo reacionário e desejo de atualização, que então se revelou explosivo, precisam ser pensados juntos, naquele mínimo ato social total de artistas. Buscando apresentar o atraso aos atrasados do tempo, os jovens artistas descobriram, no próprio ato, happening, que o atraso satisfeito não era somente uma circunstância do deslocamento periférico: eles descobriram que ele era desejado.
A tensão social extremada, transe orgiástico festivo, que se estabeleceu na cidade, como símbolo social efetivo ao redor dos modernistas, foi essa. Fora do mundo, no mundo, o país se expressava a si mesmo como um duplo desejo, simultâneo e produtivo de excentricidade e utopia, de participar do processo histórico amplo e consequente, e negá-lo ainda, com toda força. Negá-lo em nome de uma origem realizada de terror social, modo de produção mundial de riqueza contra a vida social e o reconhecimento, escravidão, que tanto alimentou nossos negacionistas de toda modernidade, que não a de seus próprios negócios e ganhos controlados de classe.
Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.