08 de janeiro de todos os dias
(Foto: José Cruz/AB)
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Os dias que seguiram ao 8 de janeiro foram de intensa produção textual que tentou elaborar o susto. O que uma semana antes era cenário de festa e de confraternização, transformou-se em lugar de explicitação pública, em gestos concentrados, de uma plataforma política que se fundamenta em um dos principais afetos que movem a política contemporânea: o ódio.
Fomos nos tornando especialistas em elaborar interpretações ligeiras sobre eventos que parecem nos tirar o chão. A eleição de Bolsonaro em 2018, a sua imensa votação no primeiro turno nas eleições de 2022, a quase vitória dele no segundo turno, faziam nós repetirmos a pergunta-chavão: como isso é possível? Mas fiquemos com esse clichê, porque talvez seja ele que melhor expresse a nossa incapacidade para interpretar quem somos nós.
Diante dos ataques aos símbolos do poder, os artigos giraram, de forma geral, em torno da questão militar e das hierarquias. Da cumplicidade do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, e seus subordinados, aos selfies de militares com os invasores e à necessidade de desmontar a polícia militar, as análises foram orientadas por uma concepção de poder que localiza nas correções de força interna ao poder militar seu fundamento explicativo.
Há, contudo, uma ausência nas análises: os 58.206.354 votos (49,1% dos votos válidos) de Bolsonaro. Se concentrarmos nossas análises nos 1.500 que vandalizaram os símbolos do poder, estaremos desprezando o fundamento que supostamente lhes deu legitimidade para suas ações. É preciso reconhecer o óbvio: Bolsonaro saiu dessas eleições fortalecido, recebeu mais votos nessa eleição que na de 2018. Ganhou em todas as regiões do país, à exceção do Nordeste.
A explicação do crescimento dos votos pode ser justificada pelo uso escandaloso que fez dos recursos do erário, mas essa é uma explicação parcial, porque coloca o foco da análise nas ações que partiram do executivo, em um momento pontual, mas não leva em conta a considerável identificação do/a eleitor/a com a visão de mundo de Bolsonaro, um mundo que deve ser habitado apenas por “cidadãos de bem”, em que “bandido bom é bandido morto”.
No entanto, as concepções que agora se apresentam como ancoradas na Bíblia são, antes de tudo, ressignificações de concepções que defendem a homogeneidade sexual, de gênero, racial que sustentou e segue sustentando o projeto de Estado-nação brasileiro. Mas aqui há uma diferença, por isso que é importante pensarmos em termos de “ressignificação”: em cada bairro da periferia desse país, se observou a abertura de igrejas evangélicas como nunca acontecera antes. É como se os ideológicos da “prosperidade” tivessem lido Michel Foucault. E ali, na esfera miúda, praticando pequenos gestos de cuidado, é que os discursos dos pastores se tornaram verdade. Encontrou no solo fértil do horror à diferença os nutrientes necessários para prosperar.
Esse horror é nossa marca constitutiva de Estado-nação e a herança maldita da escravidão em que estamos todos/as imersos/as, seja reproduzindo-a ou tentando desmontá-la com políticas de reparação e de produção de uma outra história. Impressiona-me como essa herança segue sendo desprezada nas análises da emergência de Bolsonaro e mesmo como um dado que deve ser levado em conta quando se analisa o 8 de janeiro. Não precisamos recorrer ao nazismo ou ao fascismo, experiência localizadas na Europa, para explicar a emergência e adesão ao bolsonarismo. Todas as vezes que leio análises que não o vinculam à nossa cultura política e tentam deslocá-lo para os referentes teóricos e políticos europeus (inclusive com exemplos: “o 8 de janeiro foi a nossa Noite dos Cristais”), se está contribuindo com trabalho de apagamento da longa tradição de práticas continuadas de políticas genocidas que antecedem em séculos os genocídios cometidos pelos europeus contra europeus. Esquecemos muito rapidamente que cada casa, neste vasto território, era um centro de tortura e que corpos eram enterrados nos quintais, jogados em covas coletivas.
Voltemos aos dados das eleições: em 2018, quando derrotou Fernando Haddad (PT), Bolsonaro obteve 57.797.847 votos (55,13%). Agora, Lula venceu apenas na região Nordeste, onde fez 69,34% dos votos, ante 30,66% de Bolsonaro que venceu no Centro-Oeste (60,21%), no Norte (51,03%), no Sudeste (54,26%) e no Sul (61,84%). Lula ficou com 60.345.999 votos (50,9%).
Que se mude a cúpula das Forças Armadas, que se acabe com as polícias militares, mas não esqueçamos: Bolsonaro é sintoma e tem muitos herdeiros, inclusive biológicos. O que lhe falta de estrutura partidária consolidada, lhe sobra em familismo. Talvez a pessoa de Bolsonaro possa vir a ser enfraquecida pelos processos jurídicos que certamente terá que responder por corrupção. Porém não estamos lidando com “Bolsonaro”, mas com o nosso passado presentificado, encarnado, todos os dias no genocídio da população negra, dos povos originários, das pessoas trans.
Após os atos de vandalização do dia 8 de janeiro, qual a reação dos 49,1% que votaram em Bolsonaro? Não houve grandes movimentos de repúdio ao ato. Ao contrário, espalharam-se fake news de que os invasores eram membros disfarçados do MST. Outra reação foi de apoio explícito “ao direito de manifestação” e, por fim, um silêncio estrondoso daqueles que votaram em Bolsonaro.
Se fala em reestruturação do Estado brasileiro, eu prefiro pensar em termos de construção de outra sociedade que seja “o resultado” (as aspas são para me distanciar de uma visão teleológica de história) dos embates diários com as heranças de nossa cultura política.
Ao se priorizar (e mesmo absolutizar) a dimensão da política institucional e não se ater à dimensão das disputas na esfera das mentalidades (ou da cultura), estamos fadados a perder o jogo para os futuros bolsonaristas. Uma das esferas dessas disputas está na produção de outra memória, em que se possa ter acesso e conhecimento amplo dos horrores da escravidão e da ditadura militar. Essa história precisa ser contata e, talvez, cheguemos à conclusão que Bolsonaro é uma figura banal, ele sempre esteve entre nós. Ele sempre hegemonizou a correção de forças no Parlamento (à exceção da Assembleia Nacional Constituinte em 1988), ele está nas delegacias, nas varas de justiça, veste toca, veste branco.
O Estado tem sido propriedade privada dos bolsonaristas antes mesmos de Bolsonaro, o novo nome para senhores/as do engenho e senhores/as escravocratas. Seria ingênuo pensar que será durante o governo Lula que produziremos outra consciência coletiva em que a defesa da vida e da justiça social sejam valores inegociáveis. Esse é um trabalho de longa duração e não se pode terceirizar para o governo federal uma tarefa que cabe a todos/as, porque todos os dias é dia 08 de janeiro no Brasil.
Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e Pesquisadora Visitante do CES/Universidade de Coimbra.