Vozes abolicionistas penais no Brasil

Vozes abolicionistas penais no Brasil
Os abolicionismos penais são um conjunto heterogêneo de produções acadêmicas, de militantes e ativistas (Foto: Unsplash)

 

Ele bradou na aldeia
Bradou na cachoeira
Em noite de luar
No alto da pedreira
Vai fazer justiça
Pra nos ajudar

Quarta-feira é dia de estreia. A cada quinze dias, a partir de hoje, vamos nos encontrar para falar de abolicionismos penais. Que esta coluna exista em um espaço mais amplo que a arena jurídica e acadêmica já diz alguma coisa sobre a pertinência dos abolicionismos hoje. A questão, a partir de agora, é tornar essa pertinência incontornável, onde quer que se fale sobre política, democracia e outros modos de existir em sociedade.

Abolicionistas penais estão nas lutas e saberes a favor da descriminalização das drogas; na defesa de cuidados com a saúde mental que dispensam manicômios; na educação de crianças e jovens pela ruptura com o regime dos castigos e pela afirmação das diferenças; na ruína das prisões e na denúncia incansável do sistema de justiça criminal como dispositivo racista. São tantos e diversos que qualquer definição sobre abolicionismo penal que se pretenda exclusiva e definitiva, certamente, fracassará. Por isso, aqui iremos sempre no plural – abolicionismos e abolicionistas.

Mas, para os recém-chegados ao debate, curiosos e atentos, é possível adiantar, com algum grau de firmeza, que os abolicionismos penais são um conjunto heterogêneo de produções acadêmicas, mas também militantes e ativistas, que rompem com a naturalização de noções como crime e pena, e com a prisão como mal necessário.

De certa forma, é possível dizer também que os abolicionismos penais tomaram para si a afirmação de William Godwin (1756-1836) de que “a punição talvez seja a questão mais fundamental da ciência política”. Com isso, estamos em confronto direto com toda tradição contratualista que justifica o poder de punir do Estado e, mais, diz que sem ele seria pior. Pior que prisão, pior que a milícia, pior que a polícia, pior que as execuções sumárias, enfim, pior, entendem? Pois é, nós também não. A este debate teórico, retornarei aos poucos, em companhia de anarquistas, marxistas, decoloniais, queers, antirracistas, entre outros, em alianças precárias, instáveis, mas costuradas pelos fios de uma ética da expansão de vidas dignas de serem vividas, por cada pessoa e por todas as gentes.

 

Por hoje, eu gostaria apenas de
interromper uma longa cadeia
de repetições que informa que
não existe conteúdo abolicionista
suficiente publicado no Brasil.

 

 

É claro que se os referenciais forem a produção sobre direito penal e sua irmã mais nova, parida e emancipada das ciências sociais, a segurança pública, será forçoso reconhecer o caráter minoritário dos abolicionismos penais. No entanto, não apenas o volume da produção, entre traduções e escritos originais, não pode ser considerado pequeno, como a recente proliferação de frentes estaduais pelo desencarceramento, desmentem a escassez de fontes abolicionistas. A multiplicidade de perspectivas e abordagens reforça intensificação das nossas produções nos últimos anos.

Se fosse somente pelo trabalho original do Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP, já seria incorreto dizer que não há grande e consistente trabalho abolicionista penal no Brasil. Ainda no início dos anos 2000, o Nu-Sol mobilizou a produção do “Curso livre de abolicionismo penal” e reuniu, sob coordenação de Edson Passetti, escritos de Vera Malaguti, Nilo Batista, Thiago Rodrigues, Maria Lucia Karam, dentre outros. De lá para cá, o Nu-Sol produziu dezenas de revistas, boletins, dissertações, teses e outros livros que podem ser encontrados em seu site.

No campo das traduções, há décadas circulam entre nós Penas perdidas, de Louk Hulsman, e A indústria do controle do crime, de Nils Christie. Mais recentemente, a produção de Angela Davis nos chegou, com destaque para Estarão as prisões obsoletas? e A democracia da abolição. Em breve, teremos, enfim, Prison on trial, de Thomas Mathiesen, anunciada no início de 2020, pela turma do Ricardo Genelhú que, aliás, publicou em coautoria com Sebastian Scheerer, o Manifesto para abolir as prisões.

Das mãos de Guilherme Moreira Pires, chegou recentemente às livrarias Abolicionismos: vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias, coletânea de artigos marcada pelas presenças de Camila Jourdan, Vera Regina Andrade, Paulo Edgar Resende e Margareth Rago. E nisto que não é um inventário linear, exaustivo ou com pretensões enciclopédicas, gostaria de ressaltar ainda o livro Abolicionismos, da parceria entre Gustavo Noronha D’Ávila e Vera Guilherme, e O que é encarceramento em massa?, de Juliana Borges. Se avançarmos para novos formatos e tecnologias, vale ainda uma passada no canal Cifra Oculta, do Samuel Silva Borges, lá no Youtube.

 

Esta rápida mirada é meramente
exemplificativa e, com o passar do
tempo, pretendo trabalhar para
expandir as referências e fazer
justiça às ausências.

 

 

No entanto, creio que, por ora, ela seja suficiente para suspender a suposta constatação de que são poucas e raras as vozes abolicionistas penais no Brasil. Posso pensar muitos motivos para que uma afirmação assim seja repetida à exaustão, muitos até razoáveis, mas desconfio que ela opera também pelo silenciamento. Dizer que não existe “tanta coisa assim” sobre abolicionismos é menos uma constatação e mais uma forma de fazer com que desapareçam as incômodas e urgentes críticas feitas por abolicionistas penais que, como disse acima, vão desde questões cotidianas, como a relação com as drogas, até o cerne da teoria política e da filosofia moderna.

Nesse conjunto diverso e disperso habitam tensões. Buscarei, ao máximo, ser leal a elas, sem esconder minhas afinidades e afetos. Entre as questões que precisam ser encaradas urgentemente por abolicionistas penais está a facilidade com que reconhecemos e incorporamos parceiras com homens brancos europeus, de Foucault a Wacquant, cujos trabalhos são, certamente, de valor inestimável para os abolicionismos, mas nos permitimos permanecer ignorantes, silentes ou distantes de referências propriamente abolicionistas, como Ruth Gilmore e seu Golden Gulag, ainda sem tradução no Brasil (atenção, editoras!), ou da análise e das questões cruciais elaboradas por Ana Flauzina em “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”, das quais não devemos e não podemos escapar se assumirmos, de fato, um compromisso com lutas abolicionistas penais situadas a partir da nossa experiência colonial e com vistas a sua superação.

Admito, antes de encerrar esta breve abertura, que não possuo um roteiro previamente traçado para nossos encontros às quartas-feiras. Penso em fazer esse espaço permeável a questões teóricas, pragmáticas, sugestionáveis pela política do presente, mas sem cair na armadilha das polêmicas caça-likes, na ansiedade de apresentar respostas prontas, cheias de frases de efeito e vazias de reflexão, para satisfazer às pautas midiáticas da vez. Obviamente, a força e o sentido dessa proposta depende da leitura e das trocas generosas com vocês. Espero que aceitem.

Ele bradou na aldeia
Kaô Kaô!
E aqui vai bradar
Kaô Kaô!

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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