Notícias de outras ilhas: Simone Brantes
A poeta e tradutora Simone Brantes (Foto: Arquivo pessoal)
Simone Brantes (1963) publicou três livros de poemas: Pastilhas brancas, No caminho de Suam e Quase todas as noites. É autora também do volume dedicado à poeta Rose Ausländer na coleção Ciranda de poesia (EdUERJ/EdUFPR, 2019). Publicou poemas e traduções de poesia em diversos jornais, revistas e antologias, como A poesia andando: treze poetas no Brasil e Roteiros da poesia brasileira: anos 90.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Leonardo Marona, Tarso de Melo e Tatiana Pequeno. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Quando li pela primeira vez esse título “Notícias de outras ilhas”, fiquei admirada – mais uma vez – com essa presteza e beleza (como é bonito esse título!) com que o Tarso de Melo vai ao encontro das urgências do nosso tempo, nos convocando a responder a elas em sua companhia, do modo que nos for possível. E me lembrei, quando o convite se estendeu a mim, daquela velha e desbotada máxima “ninguém é uma ilha” e daquele verso francês cantado pelo Caetano Veloso: “car mon île c’est le paradis”. Nunca imaginei que viveria essas duas afirmações numa radical tensão: sendo uma ilha na impossibilidade absoluta de ser uma ilha, vivendo em um paraíso assombrado pelo “coração das trevas”. Li bastante durante essas semanas. Sobretudo textos teóricos muito bons: Franz Kafka: sonhador insubmisso, de Michael Löwy, e um livro ao qual fui levada por essa leitura, L’art du roman, de Milan Kundera, que por sua vez me levou ao romance As aventuras do bom soldado Švejk, de Jaroslav Hasek, um escritor tcheco, contemporâneo de Kafka, e que talvez possa ser apresentado como o seu irmão cômico, um Aristófanes escrachadíssimo, diante de um Sófocles que nas suas tragédias também não dispensasse o humor. Além dos “Poemas da quarentena para o sarau pós-apocalíptico”, que estão lá na minha página do Facebook, enviados por tantos poetas e que me ajudaram muito a encarar as primeiras semanas do confinamento, alguns poemas que me tocaram especialmente durante esse período também foram publicados nesta rede social:
***
Como eu
Leonardo Marona
o isolamento agora me permite
algo que a vida comum impede:
que eu me sente por uma hora,
em posição bastante confortável,
sem me mexer, pensando pouco,
sem dizer nada ou coçar o nariz.
e mesmo sem quase nada a fazer,
ninguém com quem se possa falar
– refiro-me a completos estranhos
com quem posso criar as mentiras
e não a família que eu sei, me ama,
e estaria melhor, eu tenho certeza,
se eu pudesse sorrir um pouco mais
– sobre as coisas sem importância
a que damos estatus de ovo de ouro
da nossa colisão que distraía a morte,
ainda assim passo apenas uma hora
sem dizer palavra que salve alguém
de mim mesmo ou eu mesmo de mim,
como aprender a morrer sem pressa,
como espalhar substância imaterial.
coisa mais estranha, ando ouvindo
joão gilberto e realizando refeições,
meditando à tibetana e querendo sair
do corpo de uma vez ou pelo menos
encaminhar o morto ou mentalizar
uma lápide na nossa vala comum.
estou feliz ficando cabeludo, além
dessa fuça de cientista desmiolado.
as plantas, como eu, não reclamam
e quase posso sentir que estão até
muito felizes porque todos em volta
agora se parecem um pouco com elas.
cozinho tudo com batatas e não toco
em nada que possa me contaminar –
mas a sensação é exatamente oposta,
ou seja, a de que eu contamino tudo.
perdi o mérito narcísico de estar preso
a minha própria ideia de mim mesmo.
o isolamento como instrução massiva
fere o solitário em sua trilha fantasma.
terminei um romance gordo e só leio
dois ou três poemas por dia, naquela
máquina automática de caçar moedas.
os gatos, como eu, não sabem se estão
de fato felizes ou miseráveis pela falta
da nossa tão esperada ausência típica
da nossa espécie que, em alguns casos,
veio ao mundo só para louvar os gatos.
gosto de sentir como se fosse um deles,
por mais que isso venha acompanhado
por uma fina fúria contra essa extinção
que empurramos contra nós mesmos.
queria dizer ainda bem que existe arte
e podemos alimentar nossos espíritos
com a consolação estética da epidemia.
estico até onde posso uma corda velha
que ninguém via e agora ninguém vê.
para os sempre concentrados em morrer
a ideia não modifica a turva substância
que me empurra para dentro do silêncio
e desinfeta as mãos da minha esperança.
***
Ao telefone [para o Matheus]
Tarso de Melo
(1)
digito uma letra no telefone e surgem
entre os contatos dois amigos mortos
passeio pela lista e vejo outros nomes
de pessoas para quem não vou mais ligar
se insisto, não me atendem mais
se desisto, dizem algo que não ouço
deixo os números ali, os nomes, suas fotos
deixo nosso silêncio, no entanto, vivo
deixo-os como uma janela antiga
deixo ali o contato impossível
(2)
salto sobre os nomes dos amigos
que poderiam me atender
salto e temo pelo dia em que
seremos todos impossíveis, intocáveis
uma longa lista de contatos
em que ninguém se deixa contatar
como se um vírus alterasse
todos os números que não sei de cor
como se apenas o vírus soubesse
o que ainda nos falta tocar
***
Silente
Tatiana Pequeno
não sei como deve ser fundar uma vila
chegar entre mata muito fechada
ou ir ao encontro da natureza inviolada
dos terrenos e das clareiras mais sagradas e puras do mundo
sei apenas dividir meu cabelo, partir o pouco pão a que tenho direito,
gastar a cor das sapatilhas com que ando
não sei recuperar a luz dos dias mais bonitos
e escrevo neste lugar temente
de que de repente tudo finde
e nós não tenhamos testemunhado
quase nada sobre a beleza daquilo
que vimos e não pudemos guardar.