Notícias de outras ilhas: Prisca Agustoni
A poeta Prisca Agustoni (Foto: Arquivo pessoal)
Prisca Agustoni nasceu no Ticino, Suíça italiana, onde volta sempre que pode para ver as montanhas refletidas como gigantes no lago. É docente de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora, poeta e tradutora. Escreve em italiano, francês e português, e se autotraduz nas três línguas. No prelo com a Quelônio de São Paulo, seu livro de poesia O mundo mutilado.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Donizete Galvão, Ingeborg Bachmann e Francesca Cricelli. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Escolhi esses três textos porque representam três vertentes daquilo que me inspira e ajuda a atravessar esses dias, os dias todos: a poesia intensa do Donizete Galvão, que tenho relido nos últimos meses com espanto, poesia brasileira da mais alta voltagem ética; a poesia reflexiva da Bachmann, uma autora que é central desde o começo de minha formação como sujeito e como poeta e que acaba de ganhar uma bela edição no Brasil; e o fazer-se, dia após dia, da poesia da Francesca Cricelli, poeta-tradutora-amiga com a qual tenho partilhado silêncios, dores, esperanças e projetos. Três eixos importantes que alimentam o cotidiano de alguém que vive a intimidade do confinamento com a companhia da poesia.
Tenho ouvido muita música Jazz (Keith Jarrett, Coltrane, Miles Davis) e também os brasileiros que amo, como Caetano, Gil e Betânia, que sempre tocam cordas muito profundas em mim. Gosto muito da filmografia alemã, e nesses dias estou revendo alguns filmes como o primoroso “A vida dos outros”, ou os filmes do Haneke como “A fita branca”. E estou lendo o livro do Baptiste Morizot, Sulla pista animale (edição italiana, da Nottetempo), que aborda a relação antropocêntrica do homem com o mundo. Belíssimo.
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Para Evgen Bavcar
que o anjo distraído de Klee
proteja aqueles de corpo incompleto
sacrificados à máquina
mutilados pela guerra
jogados de encontro às rochas
zele pelo corpo ferido
oculto pelas palavras
preso em próteses
coberto por máscaras
que o anjo distraído de Klee
guarde aqueles colhidos na engrenagem
produtora de ruínas
Donizete Galvão em O homem inacabado, São Paulo, Portal Literatura, 2010
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O tempo adiado
Ingeborg Bachmann
Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram ao vento.
A luz da anileira arte pobremente.
Teu olhar pressente a penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.
Do outro lado afunda tua amada na areia,
Ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe o silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olhes para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Anula a anileira!
Vêm aí dias piores.
Em O tempo adiado e outros poemas, São Paulo, Todavia, 2020. Tradução de Claudia Cavalcante
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Poema para a fiandeira de Remedios Varo em “les feuilles mortes”
Francesca Cricelli
não há de ser
só escuro o lado
de dentro do muro
o avesso do viço esse pesar
é a retina
que rege o furor das coisas
sob o descompasso da neblina
há terra úmida que germina —
o coração do ventre
mora no olhar
há de se descortinar o céu de si
vento estrela aurora boreal
arrancar da própria costela a mulher que ali habita
morrer-se a cada dia um tanto
concha
semente
pranto
navegar além do canto (e do silêncio)
das sereias do pensamento