Onde os ventos (do mar) se refugiam
(Arte Andreia Freire)
Teus cabelos molhados de chuva serão levados
por um vento estranho e desconhecido.
Paulo Plínio Abreu
Apesar de tudo, o vento sopra com toda força, trazendo no seu bojo o que movimenta e revigora o espaço (literário). Sim, movimenta, através de uma revoada de experiências da poesia, numa instigante profusão de linhas transitivas, as quais, desgarradas no tempo, atravessam as enseadas e traçam uma infinidade de outras linhas. “A escritura não tem outro objetivo: o vento (…). Chaves no vento para que minha mente fuja do espírito e forneça aos meus pensamentos uma corrente de ar fresco” (GD. 1998. p, 89).
Nesse turbilhão, o ostracismo não cabe, “apenas os pensamentos andados têm valor”. Com efeito, “a vida sedentária é justamente o pecado contra o espírito” (FN. 2009. p, 12). E embalados por toda essa agitação, uma erupção de novos combates empreende-se em fluxos de toda simetria, numa verdadeira ‘ginástica’ dos afetos: “nau feita de vento e a força de um pensar antigo” (PPA. 1978. p,5).
Sempre ao norte, pelos eixos mais inusitados, numa agitação obstinada, cujo sentido é, a nosso ver, trilhar com os ventos e suas correntes intensivas possibilidades (de outros ares) para a poesia. Possibilidades e demandas partilhadas por afetos em comum, numa travessia cujo furor, além de qualquer jornada ou destino. consolida a saúde do combate. Combate da poesia contemporânea – é disso que se trata – em contra fluxo aos ostracismos (identitários) ou formas fixas, em favor das correntes de ar. Isto é, do vento, ou melhor, do que com a força dos ventos, doravante, não cessa.
É o que apreendemos desta oportuna seleta, O vento continua, todavia: dez vozes da poesia contemporânea em Belém, Kotter Editorial, 2020, organizado pelo poeta Andreev Veiga, com poemas de Antônio Moura; Izabela Leal; Ney Ferraz Paiva; Felipe Cruz; Laura Nogueira; Fernando Maroja Silveira; Luciana Brandão Carreira; Marcílio Caldas Costa; Rosângela Darwich; Andreev Veiga, num trabalho de primeira linha.
Seleção exigente e generosa, esquadrinhando um tempo (do escrever) na enseada dos ventos e redemoinhos, numa experiência de encontro, mas também de desvio, de fragmentação, de passagens, movendo temas em conexões várias, num excurso entre fluxos e devires, no bojo das incertezas do contemporâneo.
E assim podemos ressaltar, no polo das vizinhanças, Antônio Moura & Ney Ferraz Paiva. São expoentes da mesma geração, expressivos em termos de produção literária, meticulosamente virados para o próprio trabalho. Certamente, dois acontecimentos que nadam por águas distintas, por entre ondas cuja força vai de encontro aos muros do atual. Assim, num encadeamento entre o escrever e o pensar, traçam o voo do poema. Por vezes, ‘conforme a mão do inverno o toca’, como diz o poema “a sombra da ausência”. Ou ‘Onde as cartas marítimas indicam’, do poema “Qual é Macalé?” Nos dois casos, um turbilhão de afetos, demandas, através dos quais a poesia faz emergir a outra voz.
Em outro plano, alargando cada vez mais o panorama, Andreev Veiga & Marcílio Costa: dois poetas no fluxo de outras transitividades, de escolhas e caminhos devidamente modulados por modos evidentes de criações.
Andreev, em seus poemas, nos traz um curioso bloco de vagantes e desassossegados. Todos ou quase todos agarrados à vida – na parte menos solar– numa condição limite: estamos no banco traseiro da vida. Ou seja, numa situação insuportavelmente real. Tal como as personagens do filme de Ken Loach, “Sorry We Missed You”, que são tomadas por uma condição que soçobra, para o subterrâneo ou o limbo, em condição sempre cadente, num universo modulado por reveses, no qual a vida queima a vida, numa proporção insuportável. São poemas, na forma mais crua e sensível, contextualizando combates e desassossegos do contemporâneo, e trazendo, ao mesmo tempo, uma linguagem que arfa entre o esgotamento e o vazio.
Mais adiante, uma espessa camada de tempo recobre as palavras. Entre correntes e derivações, a poesia desata em velocidades múltiplas, aquém das sincronias, numa experiência das erupções, eclodindo com “toda fluidez, todo fluxo de vida buscando respirar”. Sem dúvida, a poesia de Marcílio Costa consagra uma noção de possível, ou melhor, de abertura (como linha de fuga às asfixias do contemporâneo). Em favor de “um tempo possível para a vida respirar”. Trata-se de um tempo fora das malhas da velocidade ou da noção (fascista) de progresso. Um tempo conjugando outros vetores: tempo da memória ou do mar; tempo do movimento das pedras ou do imperceptível; tempo do invisível ou “do vento no rosto”; tempo errante: multifacetado; tempo da poesia em dobra com superfícies lisas, por vezes longínquas, sempre em direções várias. É nessa esfera múltipla que o poema opera e afirma o seu possível, desgarrado no aberto, “dentro” do “fora” mais remoto, em irrevogável atravessamento da fronteira.
Por fim, dois acontecimentos fabulosos, movidos, como diz Paulo Plínio Abreu, por um “vento estranho e desconhecido” (PPA. 1978. p, 64): Izabela Leal & Felipe Cruz. Escritas demasiadas fugidias, cujas linhas, em efetiva renovação, dobram, doravante, para “fora” dos radares e das formas de captura.
A poesia de Felipe Cruz traça deslocamentos em planos descontínuos, atravessa espaços geográficos, por vezes em Paris ou Macapá, mas também transita por espaços internos: memórias, digressões. É nessa linha dupla que o poeta perfaz suas experiências, erigindo através de “gestos-de-escrita” imagens muito sutis, numa sinuosa maquinação pela qual transpõe o presente, fazendo fluir um campo fértil: condição de possibilidade para a própria construção poética. A memória, ou melhor, um memorial – da avó, da mãe, do outro – se multiplica e desata num fio de sensações e afetos, que remetem a outros e outros, numa exuberância líquida. Escrever é, na perspectiva dessas constelações afetiva, um modo de encontrar e também de sair: de experimentar / de se perder / de abrir os horizontes para “a leal doçura do que está porvir”.
Na outra margem, Izabela Leal e as evidências de um caso de transbordamento. Sim, pois a sua escrita tem uma incrível capacidade de instaurar processos, “desatracamentos”, redobras, em movimentos alçados tão somente pelo ato de escrever. Nesse panorama, a escrita é constituída de uma incrível capacidade de mutação. Ou seja, ela emerge, estruturalmente constituída, com seus enunciados, mas dotada de um desassossego, como disse Blanchot, um “impoder” (LP. 2005. p, 50), através do qual sempre «desforma», muda de pele, num jogo infinito. Mas esse processo não é banal e não cessa de causar incômodo e estranhamento. E esse é exatamente o ponto, “a parte maldita” da escritura de Izabela Leal, pois o estranhamento, nesse caso, é dotado de uma “força”, de um “segredo”, e não se rende. A nosso ver, esses escritos, baseados nesse “impoder”, são atravessados por uma poderosa capacidade criadora, cujo “desobramento” – como diz Nancy –, no horizonte textual, desarranja identidades ou formas fixas (JLN. 2016. p, 79). É nesse vendaval que tudo se instaura, inclusive, os encontros com Adília, Bishop, Hilda, uma insidiosa amizade pelo estranhamento.
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Para o alento do leitor, muitos outros textos revolvem por entre esses ventos, por essas “dez vozes da poesia contemporânea”, numa excepcional variação de formas e experiências, diga-se, todas vinculadas a modos muito singulares. São rastros que valem muito seguir, Laura Nogueira; Fernando Maroja Silveira; Luciana Brandão Carreira; Rosângela Darwich. São vozes, derivações, balbucios, efeitos próprios de uma literatura, dessas ‘sem par’, cujas linhas embaralham o marasmo.
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Dos méritos que concerne ao organizador, também poeta, Andeev Veiga, cabe, na elaboração desta antologia, além das escolhas, tão pontuais e exigentes, o recorte temático, o vento continua, todavia. Sem dúvida, é a linha propulsora deste belo volume. O vento, celebramos através dele o potencial de inconformismo e transitividade, pois com o vento podemos sentir e experimentar, como diz Deleuze, “um pouco de possível”, muito além do fixo, quer dizer, do irrepresentável.
O vento continua, todavia: dez vozes da poesia contemporânea em Belém
Org.: Andreev Veiga
Kotter Editorial
136 páginas – R$ 34,90
Nilson Oliveira é escritor e ensaísta. Editor da revista polichinello