Onde localizar o mal?

Onde localizar o mal?
Tom Williams

 

Somente em janeiro de 2023, ocorreram mais de quarenta chacinas nos Estados Unidos, mais de uma por dia.  No ano passado foram 308 tiroteios em massa registrados, segundo números da ONG Gun Violence Archive, que mapeia os casos. Os números continuam impressionantes: a taxa de homicídios com armas nos EUA é mais de 25 vezes maior do que a de qualquer outro país de renda alta, segundo dados coletados em bases públicas e publicações científicas pela organização GunPolicy.org, projeto da Escola de Saúde Pública de Sydney, na Austrália. Para ser classificado como ataque em massa, o ocorrido precisa ter deixado ao menos quatro mortos ou feridos. Ou seja, os números são piores. O que se observa no critério da Gun Violence Archive, levando em conta todos os mortos e feridos, é que encontramos um país consumido pela violência armada.

Tomemos o exemplo do massacre da Escola Sandy Hook, em Newtown, cidade tranquila do estado de Connecticut, nos Estados Unidos, onde um rapaz de vinte anos assassinou vinte crianças e seis adultos em 2012. Na época, o fato teve tamanha repercussão que levou a administração Obama a abrir um debate sem precedentes sobre a interpretação da Segunda Emenda da Constituição Americana: “Sendo necessária uma milícia bem organizada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e de portar armas não será transgredido”.

Quem quer se responsabilizar por índices tão altos? Gina Kolata, jornalista científica do jornal americano The New York Times, abordou a complexidade de certas interpretações provenientes da pesquisa sobre o genoma, que visava encontrar no sequenciamento genético a resposta aos horrores tais como o massacre de Newtown em seu artigo “Seeking answers in genome of gunman” (“Buscando respostas no genoma de um atirador”). Um ponto importante para essa comoção nacional deve ser sublinhado: todas as vítimas eram brancas.

Assim, apoiado nos direitos reconhecidos pela Constituição norte-americana, o Outro tenta avaliar o real de uma violência insensata, que divide cada um dos americanos entre o peso dos ideais armamentistas reforçados pelo trumpismo e a descoberta do “sem limites” da pulsão de morte. A estatística de todos esses massacres é indissociável de uma reflexão sobre o mal que inquieta parte da sociedade americana há muitos anos, mas foi preciso um massacre de brancos para um “despertar” de parte da população. Os massacres de negros, indígenas e imigrantes, até então, estavam naturalizados como um mero avatar. Não por acaso, logo no ano seguinte ao massacre da escola em Newton, explodiu o movimento Black Lives Matter, iniciado nas mídias sociais e que em seguida ganhou as ruas, após a absolvição do policial branco George Zimmerman, responsável pela morte do adolescente afro-americano Trayvon Martin.

O anonimato de tantas mortes evoca o pensamento do filósofo Emmanuel Levinas e sua interrogação sobre a face do mal na sociedade contemporânea, sobretudo após os relatos das duas grandes guerras. Levinas afirmava que, para produzir um ataque de massa, é preciso apagar o olhar singular da vítima, pois a face do outro é uma barreira contra o ato. Nesse mesmo gesto de apagamento, institui-se uma máscara do mal que encobre a população que se quer segregar.

Assim, o debate sobre a origem do mal é colocado novamente em questão nos Estados Unidos, não sem respostas que apontam para a razão cínica. O problema não está no Estado, mas na responsabilidade de cada assassino, um a um. Daí ser necessário encontrar e extirpar as causas logo no berço. Surge então a ideia de voltar a localizar o mal nas anomalias da origem, nada de novo. Trata-se de uma saga que atravessa os séculos e reaparece em cada progresso tecnológico. Busca-se uma escritura científica que possa apagar a contingência que há em toda decisão ética. Conserva-se ainda a lembrança de um dos capítulos mais sombrios do eugenismo na América, quando na primeira metade do século passado, sessenta mil americanos foram esterilizados contra sua vontade por causa de retardamento, de doença mental ou de comportamentos “socialmente inaceitáveis”, tais como a prostituição ou a delinquência. Esses fatos foram descritos por Philip Reilly em seu livro The surgical solution, no qual ele cita o discurso do presidente da Corte Suprema da administração Roosevelt: “Seria melhor para todos se, em vez de esperar que os degenerados cometam crimes para serem executados ou que eles se deixem morrer de fome em consequência de sua imbecilidade, a sociedade pudesse eliminar aqueles que são manifestamente incapazes de prolongar a espécie. O princípio que torna a vacinação obrigatória seria suficiente para prescrever a ligadura das trompas de Falópio.”

Tratando a anomalia como um vírus responsável pelo mal, o homem “normal”, assim reificado, aparece como o duplo do homem de bem. Tudo que foge à normalidade é uma ameaça. No entanto, quando o mal surge na mais calma das cidades americanas, a ameaça é ainda mais grave, pois mostra que o véu da normalidade não é um abrigo perfeito contra ele. Como qualquer acontecimento real, leva algum tempo para que massacres, como aquele de Newtown, se tornem semblantes. Ocorreu o mesmo quando as torres gêmeas foram derrubadas. O mundo ficou tão perplexo que, ainda hoje, uma grande parte da população ocidental pode se lembrar exatamente onde estava e o que estava fazendo no momento traumático em que ouviu a notícia. Aquele momento ficou marcado precisamente por ter escapado às coordenadas simbólicas e ter explodido no real.

Assim, forjou-se um semblante de pseudociência que pudesse encobrir a irrupção do mal. Pesquisadores da Universidade de Connecticut quiseram analisar os genes de Adam Lanza, o jovem autor do massacre, e se munir de indicadores genéticos que associariam a sua passagem ao ato a um cálculo preditivo do real. É o que pensava desse caso o Dr. Arthur Beaudet, na época presidente do departamento de pediatria e de biologia molecular e celular do Baylor College of Medecine de Houston. Segundo ele, assassinatos como aqueles de Virginia Tech, Columbine ou Newtown “estão de tal modo longe da normalidade que eles possuem provavelmente uma base genética”, conforme declarou ao artigo de Gina Kolata.

Com a chacina que atingiu a população branca, os americanos se dividiram entre aqueles que reconhecem os perigos de uma sociedade cada vez mais armada e aqueles que buscam o mal como uma doença que possa ser identificada e tratada. Após o massacre de Sandy Hook os efeitos sobre as políticas de saúde mental em diversos estados dos Estados Unidos não tardaram. Sobretudo por ser mais fácil mudar as regras do que é normal ou anormal do que enfrentar o poderoso lobby da National Rifle Association (NRA, na sigla em inglês; Associação Nacional de Fuzis), que nega toda a responsabilidade e propõe, a partir desses atos isolados de violência, intensificar a elaboração de protocolos de periculosidade das doenças mentais.

Logo após o massacre de Newtown, pelo menos seis estados americanos empreenderam uma revisão dos seus dispositivos de saúde mental. O Estado de Nova York foi além; promulgou uma nova lei obrigando os clínicos da saúde mental a prevenir as autoridades em casos de pacientes potencialmente violentos. Assim surgiu o programa School Threat Assessment Response Team Program (Programa equipe de resposta à avaliação de ameaças escolares), ligado diretamente ao Serviço Secreto dos Estados Unidos, e que se tornou um extenso programa de conexão entre a saúde mental e o serviço secreto americano com o objetivo identificar as potenciais ameaças nas escolas americanas.

Novas luzes, velhas sombras

Um estudo publicado na The Lancet nos permite refletir sobre os caminhos da atual psiquiatria. Nesse artigo, financiado pelo importante National Institute of Health (NIH, instituto nacional de saúde), pesquisadores alegam ter encontrado um mesmo marcador genético nos cinco principais transtornos psiquiátricos atuais: transtornos do espectro autista, hiperatividade e transtorno de déficit de atenção, transtorno bipolar, depressão maior e esquizofrenia. Ora, toda a paleta de cores da psiquiatria atual está aqui incluída. Para aqueles que apostam nas causas genéticas das doenças mentais, o artigo representou um passo importante. Os resultados não seriam desprezíveis e nem poderiam ser ignorados, nem mesmo pelos mais ardentes defensores da causalidade psíquica dos estados mentais, entre os quais incluímos Lacan. O estudo compreende nada menos que 33.332 casos e 27.888 casos de controle analisados; sua amplitude é monumental.

Todavia, esse artigo igualmente ameaça a febre taxonômica da psiquiatria do DSM5, documento criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) para padronizar os critérios e diagnósticos das desordens patologias psíquicas. Uma vez identificada uma base genética comum, tratar-se-á, concluem os autores, de proceder uma reconsideração dos diagnósticos psiquiátricos. Assim, a nova versão do espectro genético anuncia, doravante, além do simples “espectro autístico”, os fundamentos de um mundo do “espectro generalizado”.

Nenhuma teoria genética séria ousaria dizer que um dado genético isolado seria capaz de determinar um efeito sobre o comportamento humano. Embora reafirmem frequentemente os pseudocientistas, o determinismo biológico levado ao extremo, que sugere que um único gene poderia causar uma doença mental, é uma ideia totalmente obsoleta. Entre as publicações mais recentes, o livro Schizophrenia and Genetics, The End of An Illusion de Jay Joseph, desconstrói sistematicamente essa miragem que alimenta sobretudo a associação da psicofarmacologia e terapia cognitivo-comportamental, que rechaça a psicanálise por não ser “científica”. Mas, para o grande público, a ideia que prevalece é que os cientistas procuram o gene da violência, da homossexualidade etc.

O progresso das teorias genéticas evidencia que até mesmo a herança poligênica deve estar associada a efeitos ambientais e interativos, mas o fascínio pela ideia de que os comportamentos são causados pelo real do corpo está cada vez mais presente. Este é um dos modos de banir a subjetivação dos estados mentais, reduzidos cada vez mais a comportamentos, sem que uma ética do bem dizer seja incluída na abordagem clínica.

As modificações genéticas ocorreram após milhares de anos, não há nenhuma evidência de mudanças biológicas significativas desde que o homo sapiens apareceu há 50.000 anos. Entretanto, as alternâncias políticas, os avanços tecnológicos, a emergência de novos comportamentos e sintomas induzem mudanças a um ritmo desenfreado sem nenhuma reflexão ética. É o que levou Stephen Jay Gould a identificar nessa evolução uma ruptura com a evolução darwiniana, própria às variações genéticas em si mesmas, como ele propõe em A falsa medida do homem:

A evolução cultural pode avançar tão rápido porque ela vai contra a evolução biológica – então “lamarquiana”, pela hereditariedade dos caracteres adquiridos. O que uma geração aprende é transmitido a outra pela escrita, pela educação, pelos rituais, pelas tradições e todo um conjunto de métodos que os seres humanos desenvolveram para assegurar a continuidade da cultura.

Nada mais impressionante que os avanços da ciência genética nas últimas décadas. No entanto, é impossível explicar as mudanças no comportamento humano sobre bases que são praticamente imutáveis desde que as primeiras civilizações surgiram na terra.

Não há dúvidas de que a psicanálise tem a obrigação de dialogar com a ciência, e não de lutar contra ela, pois é a ciência que nos mostra o real de onde se fabricarão as neuroses. Mas, tal como para a arte, a psicanálise não deve analisar a ciência. A ciência ensina a psicanálise. Promovendo a queda permanente dos S1, ela revela o horizonte onde jazem, não a subjetividade de nossa época, uma formulação de Lacan, mas seus sintomas. O verdadeiro desafio é o cientificismo, a promoção de falsas ciências que acrescentam ao real da ciência, sempre fora de sentido, o peso dos ideais de cada época. Francis Galton, antropólogo, estatístico e meteorologista, era primo de Darwin. Ele levou a sério a tarefa de dar sentido às obras de seu ilustre primo, tendo sido pai de dois conceitos que, cem anos mais tarde, não cessaram de se inscrever na interface complexa entre ciência e moral: a psicometria e o eugenismo. A combinação desses dois pensamentos permitiu à sociedade definir qual é a norma e, em seguida, construir a segregação radical de tudo o que escapa à normalidade.

Parasitas

Há uma diferença fundamental entre o corpo da medicina e o corpo da psicanálise. Para a medicina, há o corpo saudável, e a presença de um parasita será sempre considerada como uma ameaça para este organismo. A cura, nesse caso, implica a supressão dos sintomas. Para a psicanálise, o ser se identifica ao sintoma, e a causa é um parasita de uma outra ordem. Esse parasita veio do Outro, e a contingência deste encontro muda a relação com a natureza. Trata-se da linguagem. Neste caso, o remédio que permitiria eliminar o sintoma, teria por efeito secundário, como lemos nas bulas de alguns medicamentos: exitus letalis.

 

Marcelo Veras é psicanalista, psiquiatra e professor. Atualmente é coordenador do Programa de Saúde Mental e Bem-Estar da UFBA. Seu mais recente livro é A morte de si: psicanálise e suicídio (Cult, 2023).


> Assine a Cult, a mais longeva revista de cultura do Brasil.

 

Deixe o seu comentário

Dezembro

Artigos Relacionados

TV Cult