Notícias de outras ilhas: Ruy Proença
O poeta e tradutor Ruy Proença (Foto: Daniel Kersys)
Ruy Proença, 63, é poeta e tradutor, autor de Monstruário de fomes (Patuá, 2019). Para a seção “Notícias de outras ilhas”, indica três poemas marcantes de Manoel de Barros, Kaváfis e Leminski. Veja outras sugestão de leitura de poetas, escritores e tradutores em tempos de quarentena aqui. A curadoria é de Tarso de Melo.
Abaixo, leia os poemas escolhidos e comentados por Proença, que também sugere o disco Nó, de Giovanni Iasi e Luísa Lacerda.
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10.
Manoel de Barros
A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: O gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente encostava em ser ave ganhava o
poder de alçar.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam sobre auroras.
Pessoas viravam árvore.
Pedras viravam rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com os seus deslimites.
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MUROS
Konstantinos Kaváfis
Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.
E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio me depreda.
E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.
Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.
Tradução de José Paulo Paes
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CONTRANARCISO
Paulo Leminski
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Embora muito diferentes entre si, esses três poemas tocam em pontos sensíveis relacionados a este momento que estamos vivendo: o mundo livre da criação em Manoel de Barros, que esbarra num “destino de pedra” das civilizações contemporâneas; destino este que remete ao emparedamento em Kaváfis, não só pela inusitada situação de isolamento que estamos vivendo, mas porque a sociedade atual é feita de muros; e o apelo de Leminski à construção de pontes entre o eu e o outro que, no fundo, é o que todos desejamos: o eu só se completa no outro – solidariedade.