Notícias de outras ilhas: Marcelo Montenegro

Notícias de outras ilhas: Marcelo Montenegro
O poeta Marcelo Montenegro (Foto: Renato Parada)

 

Marcelo Montenegro nasceu em São Caetano do Sul (SP), em 1971. É poeta e roteirista. Publicou “Forte Apache” (Companhia das Letras, 2018), um dos vencedores do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional – livro que também reúne, na íntegra, seus dois primeiros trabalhos: “Orfanato Portátil” (2003) e “Garagem lírica” (2012).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras em tempos de quarentena -, indica poemas de Leonard Cohen e Lara de Lemos, além de um texto de Julio Ramón Rybeiro. Veja mais dicas aqui. A curadoria é de Tarso de Melo.

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Seja bem-vinda a esses versos

Leonard Cohen

Seja bem-vinda a esses versos
Estamos em guerra
mas espero te deixar à vontade
Não ligue para minhas histórias
é apenas nervosismo
Não fiz amor com você
quando éramos estudantes do Leste?
Sim a casa está diferente
a vila será tomada em breve
Já retirei tudo que
pudesse ser útil ao inimigo
Estamos sós
até que os tempos mudem
e os que forem traídos
voltem como peregrinos a este momento
em que não nos rendemos
em que nos recusamos decididamente
a chamar escuridão de poesia

em Atrás das linhas inimigas do meu amor, 7 Letras. Tradução Fernando Koproski

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Do acontecido

Lara de Lemos

Não mais a mesma flor
ou a mesma água
que outros são os olhos
e outra é a sede.

em Amálgama, Globo)

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Acordo às vezes minado pela dúvida e acho que tudo o que escrevi é falso. A vida é linda, o amor é um manancial de prazer, as palavras são tão verdadeiras como as coisas, nosso pensamento é diáfano, o mundo é inteligível, o que nós fazemos é útil, a grande aventura do ser. Nada, por consequência, será desperdício: o fuzilado não morreu em vão, valeu a pena o tenor ter cantado esse bolero, o crepúsculo fugaz enriqueceu um contemplativo, não perdeu seu tempo o adolescente que escreveu um soneto, não importa que o pintor não tenha vendido seu quadro, louvado seja o curso ditado pelo professor de província, os manifestantes dispersados pela polícia transformaram o mundo, o cozido que comi no restaurante da cidadezinha do interior é tão memorável como o teorema de Pitágoras, a catedral de Chartres não poderá ser destruída nem mesmo pela sua destruição. Cada pessoa, cada fato é o nó necessário para o esplendor da tapeçaria. Tudo se inscreve como crédito no livro-caixa da vida.

Julio Ramón Rybeiro
em Prosas apátridas, Rocco. Tradução Gustavo Pacheco.

 

Embora nada se compare ao que estamos vivendo agora, momentos e tempos difíceis (incluindo dúvidas em relação à minha própria escrita) costumam me levar ainda mais para o essencial. Por isso, sempre retorno a Tchekhov – “Sonhos”, que reli esses dias, segue sendo uma das coisas mais bonitas já feitas no mundo (em A dama do cachorrinho e outros contos, tradução de Boris Schnaiderman, Editora 34). Sobre essa seleção, incluí um texto que não é, exatamente, um poema; espero que não se importem. Do fundo do coração dessa pequena ilha, deixo também um abraço apertado – como na linda canção do Rodrigo Campos, “Um abraço de Ozu”. Cuidem-se.


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