Notícias de outras ilhas: Marcelo Lotufo

Notícias de outras ilhas: Marcelo Lotufo
O escritor Marcelo Lotufo (Foto: Divulgação)

 

Marcelo Lotufo é professor, tradutor, escritor e editor nas Edições Jabuticaba. No momento, trabalha na tradução de uma coleção de poemas da norte-americana Carolyn D. Wright. Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena -, indica três poemas do último livro do escritor Daniel Francoy, O Ganges represado (Urutau, 2019). Veja mais dicas aqui. A curadoria é de Tarso de Melo.

Leia abaixo os poemas escolhidos e comentados por Lotufo

***

Foram-se pacificamente os nossos mortos

Todos os nossos mortos foram-se
pacificamente: os pais, os amantes,
os índios dizimados, os prisioneiros fuzilados,
os companheiros de medo e de ódio,
os atônitos que o câncer destrói
com método, aqueles que tanto
amávamos, embora raivosos.
Caíram em perfeita harmonia com o dia
como o fruto que se perdeu
por uma maldade dos deuses.
Ainda nas piores horas, jamais pensamos:
é chegado o massacre.
E tampouco, otimistas, julgamos:
somos os sobreviventes da matança.
A tarde avança sem fraturas e se corvos
voam em torno do sol
é o cortejo de uma carcaça anônima.

***

Como pode um cadáver oferecer resistência? 

Como pode um cadáver oferecer resistência?
Como pode Heitor evitar que Aquiles
arraste o seu corpo perante os muros de Troia?
Como pode Joana D’Arc, com um sopro de cinzas,
impedir que as labaredas lhe consumam a carne?
Como pode um condenado à forca
desatar o nó da corda que lhe quebrou o pescoço?

Quem lê, dirá: mas o poeta que escreve não é um cadáver.
E eu concordarei: de fato, não sou,
mas não é essa questão, é justamente outra,
de modo que a restituo, vencida, em forma de verso.

Como pode um cadáver oferecer resistência?

***

A hora do Brasil

Não há nenhuma dúvida agora:
o primeiro alerta não foi o bastante.

Há árvores que crescem — existência apócrifa —
e invadem o sagrado espaço do fogo.
Há crianças que insistem em nascer
no que deveria ser um cemitério indígena
ou um estacionamento, ainda não decidimos.
Há vozes que não se cansam de perturbar
o nosso silêncio mais conveniente
ou que interrompem o nosso festim armado.
Há rios que ainda fluem, que ainda
frustram os nossos férteis campos de lama.

De uma vez por todas, é preciso que respeitem
o apogeu de nossa idade de ouro.

 

As perguntas que Daniel nos coloca ao longo do seu livro e nestes três poemas são mais potentes do que qualquer resposta que ele poderia ter nos dado. O desprezo à vida, a ganância sem fim, a destruição como projeto são intrínsecas à sociedade que nos tornamos. A lógica da morte e do lucro não é novidade, ainda que pareça, agora, mais aguda. Ela simplesmente alcançou quem se achava a salvo. Como pode um cadáver oferecer resistência? Não tenho a ilusão de que a poesia vá nos trazer respostas neste momento. Mas espero que a trama de perguntas, de pessoas se questionando como chegamos até aqui, cresça ainda mais no deserto onde nos encontramos.

 


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