Notícias de outras ilhas: Fabiano Calixto
O poeta Fabiano Calixto (Foto: Arquivo pessoal)
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973. É poeta, editor e professor. Vive na cidade de São Paulo com sua companheira, a poeta Natália Agra, e com os gatos Bacon Frito e Panqueca. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014) e Fliperama (Corsário-Satã, 2020). Dirige, com Natália Agra, a editora Corsário-Satã. É um dos editores da revista de poesia Meteöro. Sua educação sentimental foi ministrada pelos Beatles, por Raul Seixas, por Roberto Bolaño e pelos Ramones. Evita relação com pessoas de temperamento sórdido. No campo musical, participa, ao lado de Leoni, Lourenço Monteiro e Humberto Barros, de O Hipopótamo Alado, coletivo sonoro que lança seu primeiro single em junho; e também prepara o primeiro disco de sua banda de rock, o Gabiru Attack.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Rodrigo Lobo Damasceno, Orlando Parolini e Laís Corrêa de Araújo. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.
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Quando o Tarso me convidou para participar desta ótima seção, minha mente insistia em (re)ler o nome do projeto: Notícias de outras guerrilhas. Acho que o zeitgeist é mesmo este. É uma época terrível. E é política (para lembrar aqui a grande poeta polonesa Wislawa Szymborska). Enfrentamos uma desgraça dupla, um monstro bifronte: a pandemia de covid-19 e o fascismo bolsonarista. A pandemia, até agora, matou mais de 16 mil pessoas no Brasil (isso com a enorme subnotificação de um governo que joga sujo). Ressoa na caixa craniana aqueles versos de “Mother”, a lindíssima canção de Roger Waters: “Mother, should I trust the government?”. Eu, hein, nem pensar! O que vivemos, enfim, é um desastre sem proporções. E temos que sobreviver a um vírus que, para nosso desespero, não se conhece direito e a um presidente fascista, brutal, imundo, que quer assassinar seu povo na base da cloroquina. De qualquer modo, temos que sobreviver. É o mais importante agora. O tempo é de más vibrações, truculência, peste e burrice a granel. De qualquer modo, outras ilhas, outras maravilhas, outras guerrilhas. Seguir seguindo. Defendendo a alegria como um destino. Resistência.
Os poemas que escolhi são de três poetas que ando lendo muito nestes tempos sombrios. Poetas que manejam a linguagem para a potência. Poetas inteligentes, inquietos e nitroglicerínicos – os únicos necessários para estes tempos horrendos e convulsivos.
O poema de Rodrigo Lobo Damasceno, um dos poetas que mais gosto em atividade no país, está em seu livro de estreia, o ótimo Casa do Norte, que sairá pela Corsário-Satã em algum momento deste ano da peste de 2020. A poesia do Rodrigo é poderosa e comovente. Passeia pelas ruas da vida e encontra-se com o mais terrível e com o mais belo que ela (a vida) pode nos dar, e conjuga esse movimento pendular com uma inteligência fina e raro talento para o artesanato verbal.
O segundo poema é de autoria do poeta mineiro Orlando Parolini (1936-1991). O Parolini foi um poeta que atuou no underground paulista entre o final dos anos 1950 e o começo dos anos 1970. Não deixou livros publicados – sua obra foi recusada por vários editores, o que o fez desencanar de publicá-los. Parolini também atuou em inúmeros filmes, além de dirigir aquele que seria o primeiro filme underground no Brasil, o Via sacra (1965), cuja fotografia foi feita pelo grande cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012) que, sobre a película de Parolini, escreveu: “misturava imagens de um Cristo esfarrapado perambulando pelas ruas do centro de São Paulo com cenas estarrecedoras de nudez frontal, sexo em grupo e canibalismo. Parolini antecedeu Pasolini em sua ascese feita de excessos”. O filme, entretanto, não existe mais, pois, Parolini, num acesso de paranoia, em 1970, sob a ameaça de ter seu filme confiscado pela polícia federal e de ser preso, torturado, morto, sabe-se lá, picotou todo o negativo, fotograma por fotograma. O poeta participou de vários filmes do cinema marginal paulista, dentre eles, os magníficos O império do Desejo (1981), Amor, palavra prostituta (1982) e Filme Demência (1986), todos do Reichenbach. Além desses, vale conferir o curta, também de Reichenbach (que era profundo admirador de Parolini e dizia que “Se Roberto Piva é o Bakunin da poesia nativa, Parolini era o Kropotkin. O pastor da desordem que pregava a experimentalidade permanente era um gigante da generosidade.”), chamado Sangue Corsário (1979). O filme é um tributo do grande cineasta gaúcho ao amigo e poeta que tanto admirava. É também um dos primeiros filmes a fazer uma revisão dos anos da contracultura histórica e seus reflexos posteriores na geração que viveu. Sua estreia foi em 1979, com roteiro assinado pelo próprio Reichenbach e por Jairo Ferreira (1945-2003). [O filme está disponível aqui]
Parolini deixou quatro coletâneas de poesia: Poemas (1957-1961), Poemas do pequeno assassino (1963-1964), O pântano (1964-1968), e Cartas de Babilônia (1968-1972). No campo teatral, escreveu duas peças, Divirta-se e O frango e a freira. Também deixou um romance intitulado Culus ridendus (1986).
Estudei sua obra em meu doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada, na USP. Quem quiser conhecer mais sobre o “profeta da Galeria Metrópole” é só dar uma chegada no banco de teses da USP.
O poema “O suicida” foi escrito em 1958 e faz parte do primeiro livro do poeta, Poemas. Um livro magnífico, poderoso.
O terceiro poema é da poeta mineira Laís Corrêa de Araújo (1929-2006), uma das poetas brasileiras que mais admiro. Poeta inteligentíssima, inventiva e inquieta, nos deixou uma obra singular que merece ser lida com mais atenção. Como já escreveu Maria Esther Maciel, a poeta “[…] sempre soube submeter inquietudes, sensações, experiências, saberes, indignações de ordem política, social e até feminista […] à dosagem exata de um dizer sem sobras”. Observação cirúrgica. É isso.
Espero que gostem. Saúde! A poesia é foda!
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Dois poemas do capitalismo tardio
Rodrigo Lobo Damasceno
1.
a devastação capitalista
ressaca
as horas-extras
as notícias circulando no sangue
hong kong
pontos de ônibus na avenida paulista
riquezas
pinturas caras nas paredes brancas dos burgueses
poemas nos seus bolsos
o fim do mundo seguido da sobrevivência dos bancos
morrer feito o meu pai: pobre e sem descanso
2.
abandono
frio
nuvens cinzas
cinzas nos vasos das plantas
(sedentas)
fantasmas, zumbis, vampiros
a população motorizada
de são paulo
as engrenagens enferrujadas
da paternidade
projetos pouco rentáveis
mais dinheiro numa avenida
do que folhas em todas as árvores da cidade
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O suicida
Orlando Parolini
1.
sua mão boiava como um gesto partido
perdido
na derradeira aurora,
olhos de vidro,
as lágrimas todas guardadas
num prenúncio de voz
e o silêncio entre as pedras
talvez não tenha chegado a hora do desejo
– e o suicida dorme
amanhã será a vigília do mutilado
(no chão as flores impenitentes)
quando pedir a imutável água
(nas taças de cristal as flores impenitentes)
os pés nos espinhos repousando
(no remo as flores impenitentes)
o nada importará o anseio do seu grito
(na face do amigo as flores impenitentes)
e nada importará
o desconhecido para à margem do caminho
flutuam entre os dedos as flores impenitentes
nos trilhos,
o suicida dorme aguardando a sombra
2.
dirão que o pássaro lhe pousou no ombro
e com os pés recurvos arrancou-lhe os olhos
dirão que o grito sufocado no silêncio
foi o motivo da negação
– o suicida permanece impassível –
dirão que de pedras era seu caminho
no horizonte a sombra projetada
dirão que à noite não dormia
frio o lençol, terra que o cobria
– o suicida permanece impassível –
dirão que amava a estrela invisível
no corpo as chagas da agonia
dirão que ouvia a voz do amigo louco,
no vulto louco, louco já não seria
– o suicida permanece impassível –
todos dirão quando vier o sol,
todos correrão pela porta totalmente aberta,
mas o suicida permanece impassível
com seu colar de rosas rubras
3.
no ar riscou a curvatura do próprio corpo
os cabelos sobre os olhos
do abismo o escondiam
por ele um pássaro passou distraído
a nuvem ocultou a luz que não havia
era o silêncio de névoas correndo
deslizando nos espelhos
palavras que não se ouviam no interior da água
peixes roçavam-lhe a epiderme nua
nua e quente no sangue que não fervia
peixes eram na epiderme nua
não eram peixes na epiderme nua
não eram peixes,
nem algas,
nem flor marinha,
ali o Suicida flutuava nos líquidos desejos
4.
o vômito repreendido no cristal
a dor,
absurda, mas a dor
de não dizer na hora precisa
a palavra anunciada
o vômito repreendido no cristal
5.
na hora precisa, exata,
no momento exato virão as brumas
afagar as sombras
desprendidos os braços em gestos mútuos
para o anseio,
na hora precisa, no momento exato
a flor na jarra chora uma lágrima
(murcha)
vazio o leito, a forma abandonada
o SUICIDA já se prepara
na hora precisa, no momento exato
quando o relógio face ante o espelho
mostrar o tempo, nesse instante perene
Ele voará
sobre a mesa repousa todo o passado
a água no copo se evapora
pela noite alguém entrou amedrontado
6.
no cristal,
espelho enfurecido,
o relógio batendo,
o relógio
batendo
relógio batendo
no cristal
espelho enfurecido,
a cor se alongando,
nas filigranas atrás do véu
de cristal, espelho enfurecido
o relógio batendo,
batendo
no dorso curvado
do espelho enfurecido
derretendo a imagem sucessiva
de uma flor (seca)
no quarto escuro
o Intruso acendeu a luz
e acordou o desespero
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Vocabulário
Laís Corrêa de Araújo
Gosto das palavras
infecto e nauseabundo
– palavras que silabam
em rude contraponto
a avaria do mundo.
De umas palavras quentes
– casa, cama, mesa –
que escapam pretéritos
e futuros presentes
em sua reta clareza.
Certas partes do corpo
que bem que sonorizam:
– púbis, hímen, vagina –
palavras que batizam
a encoberta mina.
E gosto de orgasmo
palavra atravessada
como um espinho agudo
que rascante lateja
um momento de pasmo.
Também gosto de enfarte
– palavra lancinante
que quando se presenta
nem se diz – e parte
a vida num instante.