Notícias de outras ilhas: Camila Assad
A poeta Camila Assad (Foto: Divulgação)
Camila Assad nasceu em 1988 em Presidente Prudente. É caipira com orgulho e millennial não praticante. Estudou Arquitetura, literatura, tradução e tem até mesmo um diploma de poeta timbrado pela Casa das Rosas. É autora dos livros Cumulonimbus (2016), eu não consigo parar de morrer (2019) e Desterro (2019), obra contemplada pelo Proac/SP. Atualmente mora em São Paulo.
Acredita mais do que nunca que a arte nos ajuda a enfrentar os momentos de contingências negativas não deixando lacunas para o tédio. Tem revisto todos os filmes do Wim Wenders e alterna aulas (a distância, claro) de arquitetura modernista japonesa com brincadeiras de Lego e sessões de pintura e desenhos com o seu filho Joca, de 6 anos.
Para a seção “Notícias de outras ilhas”, que tem curadoria de Tarso de Melo, sugere a leitura de três poemas de Patrícia Lino da série “Pantufa”. Abaixo, leia os poemas comentados por Assad.
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A pantufa
I
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
II
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI
a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona
ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
Patrícia Lino nasceu em Portugal em 1990. Apesar da pouca idade tem um currículo vasto, coleciona ocupações e endereços intercontinentais. É poeta, artista visual e professora de literatura e cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California, Los Angeles). É doutora em literatura brasileira e autora de Antilógica (2018) e Manoel de Barros e A poesia cínica (2019). Dirigiu Vibrant hands (EUA, 2019) e Anticorpo – uma paródia do império risível (EUA, 2019; Brasil, 2020). Comecei a acompanhar sua produção e percebi que ela fazia muito mais do que simplesmente “escrever umas coisinhas”. Patrícia se abre para uma investigação profunda da poesia contemporânea, pesquisa com afinco a cultura visual e audiovisual e não demorou muito pra eu ter certeza de que estava diante de um dos maiores nomes da literatura lusófona. Patrícia não tem medo de experimentar, e isso talvez seja o ingrediente principal pra todo jovem poeta. Ela ilustra capa de livro dos amigos, faz ensaios acadêmicos desses bem sérios, cria poemas visuais, entrevista o Augusto de Campos sem titubear, faz leituras com um vozeirão potente que mistura o sotaque português com um pouquinho de Brasil, iaia (resquício do ano que passou em São Paulo estudando). Suas paródias de anticolonialismo (denominadas “Notas sobre a grandeza de Portugal que não fazem sentido a não ser para os portugueses) me fazem rir e refletir. Nesse momento de escavação decolonial, poderia soar arriscado para um europeu caucasiano tocar em um assunto tão sério e tão sensível. Mas como eu disse, Patrícia topa correr todos os riscos. A arte agradece. Nesse pequeno ensaio poético sobre a pantufa parece haver um equilíbrio perfeito entre a razão e a emoção. Francis Ponge com uma boa dose de lirismo, é claro. Para ter acesso às suas demais e tão diversas produções é só acessar patricialino.com